Mann´s Blues
Mann´s Blues
Por Wellington Sari
“ FADE IN:
EXT. OCEAN – CLOSE UP: WATER – MORNING LIGHT
We are at the delicate interface between ocean and air… liquid and gas… the event horizon
where molecules evaporate. This interchange is ethereal. ”
E assim começa o roteiro de Miami Vice. Mesmo que não tenha sido desta maneira que inicie a versão exibida nos cinemas, ou que a técnica de escrita contrarie os entediantes manuais destinados aos sem talento e aos preguiçosos que sonham redigir histórias no Celtx, vemos aqui a peça mais fiel sobre a experiência em luz, cores e melancolia que é o longa-metragem de 2006.
Temos a liberdade de não chamar essas linhas de roteiro, mas de declaração poética de princípios. Cada imagem, cada gesto, cada sutura entre os planos, cada som e cada movimento de palmeiras ao vento iluminadas pela luz amarela de poste às 3h da manhã está descrita nestas linhas. O event horizon se dá no espaço sideral da madrugada, no buraco negro da obsessão pelo trabalho experimentada pelos personagens de Mann, cuja força gravitacional é tão poderosa que faz da fuga algo absolutamente impossível, o caminho de passagem da luz que afeta o tempo (“o tempo é sorte”, diz Sonny) e faz as moléculas da sorte se transformarem em hálito noturno que pronuncia adeus. Michael Mann não apenas revitalizou o filme policial, aqui e em Fogo Contra Fogo, por exemplo. Ele inventou a tristeza. É impossível vagar pela noite e vislumbrar o silêncio da freeway deserta sendo cortado pelo som da Ferrari e evitar se contaminar pela melancolia. Não há como encarar o buraco negro sem ser tocado pelo vazio da imensidão.
Sonny (e também Val Kilmer e Robert De Niro), quando observa o oceano do horizonte difuso, que é água e ar, fuga e prisão, futuro e presente – os dias vindouros do policial ao lado de Isabella, anunciado neste plano, é etéreo e fadado a esvanecer, uma vez que os homens de Mann estão sempre presos aos seus papéis no presente, o que não significa dizer que lhes falte ambiguidade, evidentemente. Mais tarde, a bordo da lancha, que dubiamente navega e voa ao mesmo tempo, a decupagem da cena nos priva momentaneamente da paisagem diante do casal, do destino a que se encaminham, da linha que separa água e mar. Ficamos quase sempre nos rostos e cabelos a esvoaçar. Velocidade, tempo e espaço se misturam na equação física do horizonte de eventos que nunca é alcançado, que nunca é visto pelo observador: qualquer objeto que se aproxime da fronteira entre o interior e o exterior de um buraco negro, segundo a teoria da relatividade, tem a impressão de jamais atravessar o horizonte limítrofe, embora isso ocorra em um nano segundo no tempo real. Se o tempo é sorte, então ele só poderia ser imperceptível.
Sonny e Isabella alcançam Havana, partindo de Porto Príncipe, viajando à velocidade da luz do fim de tarde que se mistura aos trilhos formados por vapores brancos erguidos do oceano, apenas para cruzar o horizonte de eventos e atravessar a membrana que separa o lado de dentro do lado de fora do buraco negro. Atingido o ponto sem volta – tudo o que cruza um buraco negro desaparece e nada é emanado dele – encontra-se o destino de vários dos personagens de Mann que vagam pela escuridão da noite, que é a perda e o desaparecimento de alguma molécula fundamental para a vida.
Na viagem além do buraco negro que são os filmes de Mann, há liberdade para se suprimir o tempo (escala Porto Príncipe/Havana em segundos) e entender o espaço como fluxo contínuo que suprime a noção de dia e noite, na rotação bastante peculiar em que a Terra parece girar nos seus longas, fazendo do período noturno algo que se estende muito além das convencionais 24 horas. Se Al Pacino pode olhar De Niro nos olhos, mesmo através das paredes, se pode sentir a presença do nêmeses graças às ondas de calor que emanam dos corpos, podemos nós também navegar pelo vácuo gerado no espaço desconhecido que existe entre o plano e o contra plano. De Colin Farrel vamos para De Niro, separados pela imensidão azul, unidos pela fatalidade do tempo.
De Niro e Pacino não podem ocupar o mesmo espaço, e é por isso que os atores nunca aparecem juntos no plano – com exceção de um diálogo simetricamente filmado em over the shoulder – durante as mais de duas horas de duração de Fogo Contra Fogo. Lei e ordem são paradoxos que só podem coexistir, justamente, dentro do paradoxo desconhecido que é o buraco negro além do horizonte de eventos. O mesmo se pode dizer sobre profissão e amor. De Niro, desde sempre preparado para o momento em que teria de dizer o tchau definitivo para a mulher que ama, depara-se com a situação na distância abismal que o plano e contra plano cria entre o bandido e Eady.
Depois de sumir, De Niro é engolido pela sombra do avião e velado pelas luzes dos astros, dos prédios, dos postes e dos outdoors de neon. E, claro, pela mão de Pacino, que agora pode tocar o corpo de sua metade, e dividir a imagem e os últimos instantes de calor com a alma que já não existe mais. Pula-se o salto brutal da física para a metafísica no plano geral mostrando De Niro caído e Pacino em pé, com todo o céu acima deles. Aqui, negro, e, na medida em que a sensibilidade maior do digital passou a servir como ferramenta de impressão do olhar de Mann, o céu se tornou gradativamente mais presente e visível, com tonalidades que variam do púrpura ao blue(s).
E a matéria vira gás e sobe aos céus. O paradoxo, sempre ele, é que o amor se evapora, como se é esperado, mas, out of the blue, cai em outro personagem de maneira inesperada, as vezes do chuveiro, na visita da namorada que entra no banho de surpresa, outras na troca de olhares entre o policial disfarçado e a executiva da droga, ou até mesmo no encontro casual entre o assaltante de bancos e a designer de capas de discos no bar em L.A.. Se Mann inventou a tristeza, é porque também inventou o amor. E vice-versa.
FADE OUT.
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br