Jauja – texto 2
Jauja (2014), de Lisandro Alonso
Alguns filmes trabalham a duração como espinha dorsal de suas narrativas. Desde Antonioni e Tarkovski, o espectador está treinado para entender e digerir o tal do tempo esculpido. Os planos prosseguem muito além do normal, o corte surge minutos depois do esperado. O ritmo é contemplativo, mas há sempre algo mais a se reter. Mesmo em um cineasta como Tsai Ming Liang, que radicaliza nos planos longos, sentimos que há uma pulsão por trás de cada um deles, uma verdade que não nos escapa, porque está impressa de alguma forma e é valorizada pela construção dos filmes.
Lisandro Alonso é da turma de Albert Serra, Lav Diaz e Raya Martin (alguns colocariam Miguel Gomes no meio, mas prefiro deixá-lo fora dessa por enquanto). Ou seja, turma dos posers. São diretores que trabalham o artificialismo como mola mestra de suas obras, raramente indo além da encenação mais engessada que se possa imaginar. Os atores, na maior parte do tempo, parecem manequins em butiques de luxo, ou em lojas de fantasia, ou em instalações. Os planos são longos porque é moda ter planos longos. De que outra maneira se pode alcançar o status cada vez mais discutível de filme de arte trabalhando fora dos grandes centros cinematográficos?
Jauja, quinto longa de Alonso (seis anos depois de Liverpool, seu longa anterior), é uma bobagem sem tamanho desde o formato: 1.33:1, mas com moldura de cinema mudo. Usa um enquadramento que hoje se usa quando se quer destacar as pessoas para, ao contrário, destacar a paisagem. Tinha de botar uma firula para ficar mais chique. Então mete moldura arredondada. Embuste completo. Tem Viggo Mortensen (mal atuando como raramente se viu) como um dinamarquês que procura, ao lado da filha de 15 anos, a terra prometida que dá título ao filme. Eles encontram uma série de pessoas estranhas, que falam coisas estranhas e agem como se fossem androides. Estamos na Patagônia, no século XIX. Em dado momento, a filha vai atrás de um soldado ferido, e Viggo passa então a procurá-la pelo resto do filme. Se conseguisse passar para a outra dimensão, poderia encontrá-la, mas só um cachorro, além da menina, é capaz disso. Ou entendi tudo errado? Não importa. O pleno entendimento da história, nesse caso, não seria importante, mesmo se o filme prestasse.
Essa confusão entre tempos poderia salvar o filme, na verdade, já que em momento algum sentimos que os personagens que vimos são mesmo de época. O homem que atrai a filha de Viggo parece estar numa propaganda de TV, e os outros atores não estão muito melhores que isso. Quando surge um castelo e percebemos que a narrativa passou para o contemporâneo, a estranheza poderia ser um trunfo, o que não acontece porque Alonso prefere brincar de autor complexo, quando na verdade passa longe da complexidade. É apenas desinteressante.
Podemos imaginar, num exercício delirante de adivinhação sacana, a gestação de Jauja:
“Ei, vamos botar um cachorro esfolado como link entre uma e outra dimensão temporal”.
“Sim, e podemos colocar uma mulher misteriosa também, uma bruxa, que seria a dona do cachorro”.
“Ótimo. Mas não podemos abrir mão do cara se masturbando em algum momento. Afinal, é um filme contemporâneo”.
“Vamos botar logo no começo então, para já dar um choque”.
“OK, mas não vamos chocar demais nossas plateias burguesas. Todos verão que ele está se masturbando, mas não verão seu falo”.
“Certo, não queremos estragar o chá de ninguém”.
“E o que fazemos com Viggo?”
“Ele que atue como achar necessário. Isso não importa”.
“Pode ser”.
“Pensar em atuação é para quadrados. Estamos fazendo cinema contemporâneo, para brilhar em festivais. Vamos participar da ‘Grande Festa do Cinema’, falar dos lançamentos da Criterion e de Mark Peranson, editor da Cinema-scope”.
“Quem sabe não conseguimos uma capa na revista”.
“Eu ficaria muito decepcionado se não conseguíssemos”.
(obviamente o filme ganhou capa na Cinema-scope, e foi elogiadíssimo na cada vez mais irrelevante Cahiers du Cinéma).
O diálogo acima é obviamente fictício. Pode ser entre Lisandro Alonso e seu co-roteirista, o escritor Fabian Casas. Mas pode ser também um diálogo interno de Alonso, em que o pequeno diabinho dobrou com facilidade o pequeno anjinho. Esse anjinho, aliás, já havia sido dobrado logo depois de La Libertad, primeiro filme do diretor, e o único que vale algum vintém. Um acidente que pode nunca mais se repetir se o anjinho não for ressuscitado (aqueles que não gostarem da manjada dualidade podem inverter os sinais à vontade).
Que adianta Alonso ter mudado um pouco o seu enfoque após a chamada Trilogia dos Homens Solitários (La Libertad, Los Muertos e Liverpool)? Seu lado poser ainda fala mais alto. Nada na tela parece crível aos meus olhos. Tudo me soa a fogos de artifício para plateias descoladas.
Tanto Quintin, na Cinema-scope, quanto Cássio Starling Carlos, na Folha, e Bruno Cursini, aqui na Interlúdio, todos em textos favoráveis, invocaram Jorge Luis Borges a respeito de Jauja, e eles têm razão na referência (apesar da facilidade de se invocar Borges, um dos escritores mais cinematográficos que já existiram, ao falar sobre um filme argentino). Digo, então, em tom de lamúria: pobre Borges.
Sérgio Alpendre
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