Ano VII

10º CineOP – Balanço

segunda-feira jun 29, 2015
Retratos de Identificação

Retratos de Identificação

10º CINEOP – História e preservação

Por Sérgio Alpendre

O CineOP é especial, uma raridade entre festivais brasileiros. Porque está mais preocupado com a história, a preservação, a visibilidade de filmes perdidos ou pouco vistos, coisas normalmente desprezadas no Brasil. Nem vou falar muito da cidade histórica, que todos (mesmo quem nunca visitou) sabem que é muito agradável e mística. Não vou me estender sobre os sinos de igrejas que embalaram parte desta escrita, ou das vistas estupendas do alto das ladeiras, e mesmo das partes baixas. O entorno é certamente parte do encanto. Mas o festival se sustenta pelo cinema. E um evento que começa com A Rainha Diaba, de Antonio Carlos Fontoura, e no dia seguinte exibe Limite (Mário Peixoto) e Também Somos Irmãos (José Carlos Burle), merece ser acompanhado.

Como sempre, o CineOP propõe alguns seminários condizentes com o tema do ano: a representação do negro no cinema. Nesses seminários, a frequência costuma ser de estudantes e professores, com algumas pessoas locais no meio, mas em minoria. Neste ano acompanhei apenas um, mediado por Sheila Schvarzman e com um pequeno bate boca entre João Carlos Rodrigues e Joel Zito Araújo em que nenhum deles tinha razão. Um exagerava para mais, outro para menos. Quando o correto me parece ser não um meio termo apaziguador, mas algo ainda mais radical, em outro vetor. Enfim, a discussão seria ampla demais para desenvolver aqui, mas tem a ver com a condição de nosso desenvolvimento e a mania que temos de escamotear coisas graves como se elas não existissem ou, mais grave, não importassem. Por esse ponto de vista, prefiro errar com Joel Zito do que com João Carlos, ainda que ambos tenham dito palavras interessantes.

Não entendi a tal de Mostra Kino. É uma programação dividida, em que cada parte recebe o nome de um cineasta: Lumière, Eduardo Coutinho, Affonso Segretto, Humberto Mauro, Nelson Pereira dos Santos… até aí tudo bem. Mas quando leio Kleber Mendonça Filho, Joel Pizzini e Ana Luiza Azevedo me sobra um ponto de interrogação. O que isso quer dizer? Com todo respeito a esses diretores, é estranha essa mistura geracional.

No mais, vivas para o catálogo, que nos brinda mais uma vez com vasto material para pesquisa.

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A proposta inicial era fazer uma cobertura dia a dia, com textos no formato diário que contassem uma boa parte de minha experiência em Ouro Preto. Ao final do primeiro dia, extenuado por várias sessões seguidas e por uma noite má dormida, vi que seria impossível. Poderia retomar a proposta a partir do segundo dia, mas achei melhor concentrar as ideias para este balanço final. Este, afinal, é o modo como acredito que deva ser a cobertura de um festival, seja de nove dias, seja de cinco, ou de três. A correria da vida retomada na cidade onde moro e trabalho impediu algo mais aprofundado. Ainda assim, o balanço final, encerrado já em São Paulo, permite uma visão mais distanciada do evento. A distância é essencial. A proximidade, perigosa. Os encontros influenciam o julgamento, deixam um ar inebriante nas sessões. Passado certo tempo, dá para precisar melhor o que ficou e o que se esvaiu dos filmes vistos. O que ficou foi a força de Retratos de Identificação, de Anita Leandro, um dos longas mais fortes que vi em festivais brasileiros recentes. O que se esvaiu, definitivamente,  foi o curta de Leonardo Mouramateus, A Festa e os Cães, que alguns amigos presentes elogiaram e eu realmente não entendo por quê. O que ficou foi a descoberta de Gerson Tavares. Não é um gênio, mas fez coisas bem interessantes entre os anos 60 e 70. O que se esvaiu de vez foi a ideia de que temos uma boa safra de curtas-metragens. Bem, na real, essa ideia já tinha se esvaído muito antes.

Uma outra ideia, que sempre me pareceu certa, é a de que o festival deve assumir seu lado histórico e dar uma banana para o contemporâneo, já devidamente privilegiado em Tiradentes (da mesma Universo Produções). Mas admito que essa ideia sofre certo abalo após Retratos de Identificação, petardo que deve ser exibido sempre que possível, para lembrarmos que há exceções no cinema brasileiro contemporâneo. Desconta-se o fato de que o filme já tinha passado em Tiradentes. Quem não pode ir ao festival de janeiro teve como ver agora, e isso é importante. Noves fora: melhor é abolir a necessidade de filmes contemporâneos, mas deixar aberta a possibilidade de exibição de algum filme, inédito ou não, que faça sentido no meio da programação do CineOP. Tanto o filme de Anita Leandro quanto o de Carlos Nader (Paixão de J.L.) fariam sentido dentro da programação. Os curtas, não, apesar de nutrir certa simpatia por Sociedade do Cloro e Lua Nova.

A seguir, como de costume, algumas palavras sobre a maior parte dos filmes que pude ver ou rever dentro da programação do 10º CineOP:

Alma no Olho

Curta de 1973 dirigido por Zózimo Bulbul. Ele próprio é o centro e a razão de ser do curta. Aparece inicialmente nu, incorporando em seguida algumas roupas e assessórios. A certa altura, uma algema aparece em seus braços, tornando mais clara a relação com a escravidão. Ele simula gestos de futebolistas e boxeadores, numa tentativa de pensar o papel do negro, ou o que lhe cabe, numa sociedade preconceituosa como a nossa. Tudo isso em um cenário branco, à THX, que realça o contraste com a pele de Zózimo. Não é desprezível, embora tenha cara e limitação de projeto (e protesto) estudantil.

Antes, o Verão

Em um momento chave deste filme raro de Gerson Tavares, Jardel Filho tem um diálogo elucidativo (que obviamente não saberei reproduzir com exatidão) com sua vizinha, Gilda Grillo, com quem logo depois terá um affair: “gosto de psicodelia, LSD…”, diz ela, enumerando coisas bem típicas do verão do amor (67 na Inglaterra, com ecos em 67/68 no Brasil). Ao que ele responde: “Eu ainda estou na Bossa Nova”. De certa forma, essas falas refletem um pouco o que é Antes, o Verão naquele momento, 1968, no contexto do cinema brasileiro e mundial: um filme que parece de dez anos antes, o que de jeito nenhum, nesse caso, deve ser entendido como um demérito. Porque apesar de alguns truques herdados da Nouvelle Vague francesa, que Tavares espalha por sua narrativa, sobretudo nos momentos em que registra um acontecimento por meio de stills (a queda de Jardel Filho é um ótimo exemplo disso), o tom é devedor do Zurlini de final dos anos 50, algo como A Garota com a Valise ou Verão Violento. A música é melodramática. Há um clima de leve desespero no ar, e a pontuação é característica dos melodramas italianos. A crise no relacionamento de Jardel com Norma Bengell lembra também coisas do Rafaello Matarazzo, ou o Antonioni de O Grito. Por outro lado, o momento já mencionado em que Jardel Filho leva um tombo da escada, e esse tombo é registrado em stills, indica outra filiação, mais de acordo com a segunda metade dos anos 60. É quando ele conhece a bela vizinha com quem terá um caso. Ele acorda com a cabeça repousada nas pernas dela, que parecem fazer um convite, e ele estará pronto a aceitar assim que virar o corpo para encará-la, depois de levantado. É uma cena curiosa, porque Tavares demora a mostrar o rosto da moça que lhe dá assistência (Gilda Grillo), assim como o próprio Jardel demora para ficar curioso em verificar quem estava dando colo a ele. A estranheza domina toda a sequência. Uma estranheza que é comum no final dos anos 60, quando certas amarras didáticas já estavam sendo abolidas no cinema dito comercial. Ou seja, entenderia perfeitamente se o filme fosse de 1959 ou 1960, mas ao mesmo tempo existem sinais claros de referências posteriores.

Sei que a maior parte do que era feito no mundo não respondia aos preceitos do cinema moderno, e no cinema brasileiro não seria diferente (por sinal, é o que Bordwell aponta ter acontecido nos EUA na época da Nova Hollywood). Uma enormidade de filmes, digamos, clássicos foram feitos nessa época, mas nem por isso eles não seriam, todos, mesmo estando em maioria, deslocados no tempo. Por um simples motivo: esses filmes são lembrados, estudados, vistos e revistos hoje? Muito raramente. Alguns deles merecem maior reconhecimento. Mas o fato é que tendemos a subvalorizar filmes que aparentam caretice em meio às doideiras feitas nos anos 60. E é nesse sentido, o de espírito de um tempo, onde uma minoria de filmes falava mais alto, que devemos situar Antes, O Verão, um objeto estranho em relação ao que retemos daquela época. Alguns filmes do biênio 1967/1968 a título de comparação: Terra em Transe, Câncer, Brasil Ano 2000, O Bandido da Luz Vermelha, A Margem, Hitler do 3º Mundo, Viagem ao Fim do Mundo, O Homem e sua Jaula, A Vida Provisória, Garota de Ipanema, As Amorosas, entre muitos outros filmes que se alinhavam de alguma forma à chave da época e que hoje são bem mais lembrados e reverenciados. É compreensível, então, que Antes, o Verão tenha sumido de circulação depois de um tempo. O que não deixa de ser injusto.

Antes, o Verão foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo de 2014. No meio de tantos filmes, lembro de ter anotado como uma das prioridades. Mas quem disse que é possível ver todas as prioridades num evento tão grande como a Mostra SP? Bom que o CineOP o resgatou e o exibiu com maior alarde. O filme e seu diretor merecem.

Curtas de Gerson Tavares

Lembram os curtas de início da carreira de Ermanno Olmi, institucionais para a Edison Volta. A sessão começa e termina com curtas burocráticos, mas é recheada com cinco curtas muito bons entre o começo dos anos 60 e meados dos anos 70: O Grande Rio, de 1959, explora o São Francisco. Brasília, Capital do Século é o belíssimo registro da construção de Brasília, em 1959, Feito na mesma época e com a mesma equipe temos o documentário sobre arquitetura moderna brasileira, Arte no Brasil Hoje, também de 1959. A cor explode bonita nos dois primeiros curtas dos anos 70, Gafieira, de 1972, com fotografia primorosa de Lauro Escorel, e Ensino Artístico, de 1973, que remete igualmente a filmes feitos antes e depois dele: O Mistério de Picasso, de Clouzot, e Ser e Ter, de Nicolas Philibert.

A Negação do Brasil (2000)

Um passeio pelas telenovelas brasileiras, e também uma aula de história do preconceito no Brasil. Há quem diga que não existe preconceito por estas terras, o que é absurdo. Joel Zito Araújo mostra que existe, e que qualquer combate no sentido contrário era rechaçado popularmente, como na novela Corpo a Corpo (1985), quando Zezé Motta faz par romântico com Marcos Paulo. Motta conta das cartas que recebiam, e de toda a hostilidade do público. É de corar de vergonha de ser brasileiro. Num outro momento, Nelson Xavier fala palavras elucidativas e perspicazes sobre o preconceito disfarçado brasileiro como o maior obstáculo para uma luta por igualdade racial mais efetiva.

Há enorme sintonia entre Negação do Brasil e a sequência final de A Hora do Show, também de 2000, em que Spike Lee mostra a representação do negro na história do cinema americano. Mais do que um filme bom, é um filme necessário.

Paixão de J.L. (2015)

Quase JLG, e creio ser proposital a brincadeira com as semelhanças das iniciais de José Leonilson, artista plástico soropositivo falecido aos 36 anos, e as iniciais de Jean-Luc Godard. Vem logo à mente o fabuloso JLG/JLG – Auto-retrato de Dezembro, com que Carlos Nader dialoga, a meu ver propositadamente, ainda que use dos mesmos artifícios de Godard para alcançar outros objetivos.

Noites Traiçoeiras

Curta que vai na contramão da desdramatização corrente para explorar um excesso de interpretação que lembra os piores momentos do Zorra Total. Creio não precisar dizer mais nada.

A Festa e os Cães (2015), de Leonardo Mouramateus

Uma série de fotos são colocadas, uma por cima da outra, enquanto uma narração que varia de emissor e é quase sempre insuportável faz uma espécie de inventário das jornadas de grande parte dos jovens cineastas de hoje: festejar até não mais poder, fazer filmes irrelevantes e endeusados cegamente e posar de reis das cocadas. A grande festa do cinema, como dizia o título daquele lixo cometido por Raya Martin. Quando o cinema deixa de ser arte para ocupar seu papel como propulsor de frivolidades e vaidades. Tirando as falas, o curta se assemelha a um tempo perdido olhando as fotos de estranhos no facebook. Não consigo entender como isso pode ser minimamente interessante. Pior é que o curta anterior de Mouramateus, A Era de Ouro, não é ruim. Porque alguém de fora pode muito bem entender São Paulo como um filme do Christian Petzold. A Festa e os Cães, por qualquer viés que se olhe, é constrangedor.

Retratos de Identificação (2014)

Se Negação do Brasil é necessário, aqui estamos diante de um filme mais do que necessário, e para lá de bom. É uma verdadeira pedrada na consciência da sociedade brasileira. O maior acerto é a concentração no drama de quatro guerrilheiros, sendo que apenas dois deles sobreviveram. Não passa, salvo falha na memória, pela questão racial que é o principal tema do CineOP deste ano, a não ser em uma breve observação sobre a ausência de negros entre um grupo de opositores da ditadura militar. Mas fala de arquivo, do resultado de uma pesquisa esmiuçada sobre registros da ditadura. Filme para mostrar aos lobões da vida, que insistem em diminuir os efeitos da ditadura nefasta que tivemos no Brasil.

Vi alguns outros curtas, dos quais curti parcialmente Sociedade do Cloro e Lua Nova. Ambos filmados de maneira digna, sem grandes firulas, explorando coisas universais como o envelhecimento (caso do primeiro) e o amadurecimento (o segundo).

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A revisão dos filmaços Rainha Diaba, Limite e Também Somos Irmãos ficará para outra ocasião.

E encerro, se me perdoarem a petulância, com votos de que o CineOP passe a acontecer em Julho, um mês meio morto, e que tenha mais dias de programação. Seja quando for, que continue forte e contra a maré.

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