Ano VII

Mad Max

quarta-feira mai 27, 2015

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Mad Max: Estrada Para a Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015), de George Miller

Em tempos de apocalipse, surge Mad Max. Quando o mundo percebeu, no início dos anos 70, que o petróleo é uma fonte esgotável, e a Organização dos Países Exportadores de Petróleo decidiu aumentar os preços e produzir menos, o pesadelo de um mundo escasso em gasolina materializou-se através da câmera de George Miller.

O petróleo ainda existe em (certa) abundância e agora teme-se pelo fim da água. Os carros continuam a ser alimentados, agora com culpa. Nunca em qualquer outro momento da História o automóvel foi tão detestado e combatido. Besta Antiquada, Relíquia Da Era Machista, Assassino de Ciclistas: o culto ao carro parece nos levar de volta para o passado, o passado de desrespeito ecológico e opressão às mulheres. O carro é a embolia de ferro velho que entope as veias da cidade e impede a circulação da vida?

O veículo não mais representa a liberdade, a aventura, o individualismo (o pecado dos pecados). Perder estas regalias pouco importa para o mundo atual, e é com bastante sagacidade que Miller re-significa o deserto pós-apocalíptico da escassez de petróleo e o transforma na Terra Árida Dominada Pelos Demoníacos Homens-Carro.  Homens grotescos, que veneram o V8 ao som distorcido daquele instrumento metálico usado como extensão peniana, e sonham com o brilho prateado intenso do Cálice Sagrado que é o Cromado. Homens que, como os Cenobitas de Clive Barker, sofreram insólitas modificações no corpo, que os deixa desproporcionais, inchados e medonhos como um hot rod dos anos 50. Tão máquinas quanto homens, estes seres, junto com seu arsenal motorizado de dragões, são a projeção do ódio e desprezo lançados aos carros no século XXI, e Era do Eco-Bacana e do otimismo multicultural da música pop faceira que expulsou o monstro branco da guitarra elétrica.

Mad Max voltou, também, para vagar pelo cenário de apocalipse que são as salas de multiplex atual, habitadas majoritariamente por filmes de ação coloridóides, tão pesados e agressivos quanto um arco-íris, e que subvertem negativamente a característica dos grandes action movies do passado: a capacidade de exprimir uma exuberância rochosa (rocky).

Mas o filme de Miller está longe do baile da nostalgia de Mercenários, por exemplo. Mad Max: Estrada Da Fúria não tenta emular a sensibilidade do passado para discutir a mudança dos tempos, e sim faz raio X destes novos tempos e, como um Peter Tscherkassky do orçamento milionário, manipula a radiografia,  para fazer comentário acerca do elemento base  por meio das imagens, do som e do movimento, não pelo discurso das ideias. Se a ideia de velocidade e barulho atormentam os nervos de boa parte das pessoas do mundo contemporâneo, Miller constrói um filme inteiro em que o próprio ritmo das imagens e dos sons são apocalípticos e dignos de pesadelo (não é essa uma das qualidades do bom cinema? Acordado, apreender o mundo durante o dia para, à noite, dormindo na sala escura, fornecer imagens que, filtradas pela câmera/subconsciente, nos possibilitem melhor compreensão de nós mesmos e do próprio mundo). Daí que o longa-metragem é um constante movimento: o deserto aberto filmado em widescreen é como a película nua a ser preenchida pela luz e, como um trem a vapor, mover-se sempre para frente (não é por outro motivo que o diretor mostra constantemente o veículo com o guitarrista e os tocadores de tambor senão para explicitar a chave autoconsciente do longa). Estrada Da Fúria não é um filme de ação, é um filme em ação, que praticamente abole divisões entre sequências de ação e cenas de exposição.

Ao contrário da maioria dos blockbuster de hoje, o movimento, aqui, possui, de fato consequências visuais. O inimigo tem peso, pessoas sangram, rostos ficam sujos e o suor é aparente, ao contrário da imagem-síntese do filme de ação da Era Marvel, que é o close do rosto angelical de Robert Downey Jr. com gráficos em CGI ao seu redor, representando o interior da máscara do Homem de Ferro, ou, melhor, o interior do quarto da geração Y e os gráficos de atualização de Facebook e Twitter. Em Estrada Da Fúria, ao vermos carros explodirem e voarem pelos ares, assistimos a objetos que realmente atuam de acordo com as leis da física. Sem peso verdadeiro, não há violência e sem violência, não há ação (Hulk dando soco em um robô feito em computação gráfica, que sai voando como se fosse uma pipa puxada por um avião à jato é um momento engraçadinho e não a demonstração de força de um herói).

Mais do que a potência conceitual de Estrada Da Fúria – ela existe – é a potência sensorial que impressiona. As imagens pulsantes, tórridas – Miller diz ter escolhido saturar as cores, ao invés de adotar o tom sépia dos filmes pós-apocalípticos – muitas vezes resvalam no abstrato e não seria de se espantar que houvessem relatos de espectadores desnorteados que erraram a porta do banheiro ao fim da sessão. Abstração resultante do cálculo, não da incapacidade em posicionar a câmera e articular os planos, que fique claro.

Como diz a velha canção “Clube da Esquina nº2″, “porque se chamava moço, também se chamava estrada, viagem de ventania/nem lembra se olhou pra trás ao primeiro passo, aço, aço/porque se chamava homem, também se chamavam sonhos, e sonhos não envelhecem”. O filme moço do velho Miller é a viagem de aço, poeira e V8. Sem nostalgia, sem saudade. Mesmo que atualmente seja vista como pesadelo por parte da sociedade, a imagem do carro rasgando a estrada e do herói a caminhar solitário pelo deserto sempre ressoará no coração de alguns. A simplicidade do herói calado, sem piadas de uma linha na ponta da língua, também. O plano final de Estrada da Fúria basta: Max olhando para cima e se misturando à multidão. “Lá se vai mais um dia”.

Wellington Sari

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