sobre dois casamento$
Dois Casamento$: um ato de transgressão (filme de cinema de Luiz Rosemberg Filho)
Por Joel Yamaji
Diante de Dois Casamento$ (2015), de Luiz Rosemberg Filho, os filmes brasileiros da atualidade, em sua maioria, acabam parecendo um pouco infantis, colegiais na maneira de ver o mundo e vivenciar nossas diferenças, sociais inclusive. A grandeza do ato, no caso, é não se contentar com os limites desse naturalismo um tanto tosco, incipiente e grotesco, cópia de modelos esquemáticos carentes de consistência interna (na maioria das vezes nem sempre ingênuos) tal como temos visto praticado no cinema brasileiro de produção dita comercial – e mesmo nos curtas-metragens – nas últimas três décadas. E se o conseguem bem dissimular, passando-se por obras importantes de ocasião oportuna, são, no fundo, espetáculos que exploram a miséria alheia e disseminam valores discriminatórios de uma classe que se elege como acima das demais e trata o mundo como se à sua imagem e semelhança. Não mais olhar, mostrar, relacionar, emocionar-se e refletir, mas promover uma autoimagem publicitária, de poder, para lembrarmos Serge Daney, o crítico cinematográfico morto precocemente e que mantinha ainda acesa a paixão pelo cinema.
Dois Casamento$ opta pela linguagem do cinema de poesia e por uma reaproximação entre o cinema e o teatro (o cinema e o drama burguês, no caso específico). Escolhe enfrentar e mergulha nas raízes de sofrimentos que – como diz o filme – vivemos como se fossem de origem natural e nossos, mas que nos foram impostos por um sistema de vida corrompido e maníaco, pelo menos desde o Século XVIII. No filme, pode se sentir, dentro do universo criado pela encenação cinematográfica, na simplificação dos recursos técnicos utilizados, uma libertação rara na estrutura de produção de um filme nos dias de hoje, em geral, mecânica e fria. Podemos voltar a presenciar algo que, com as louváveis e heroicas exceções, torna-se ausente em nosso cinema: a energia do ato de criação humana. São apenas duas atrizes em um estúdio pintado de preto, um preto que as circunda como um manto e ao mesmo tempo, nos recortes de luz, as ressalta como figuras de natureza mítica na representação simbólica de um sonho. Elas estão, assim, isoladas, ilhadas na escuridão: duas noivas que esperam pelos parceiros na cerimônia de seus respectivos casamentos. E, como em Samuel Becket, ninguém aparece: padre, noivo, parente ou conviva. Do escuro, apenas ruídos estranhos como rangidos de portas que as cercam e o silêncio. “-A senhora fala como se a gente já tivesse deixado de existir.”/ “- E quem prova o contrário? Quem?” / “-Sabe o que eu acho estranho? É que se passaram mais de duas horas e ninguém veio saber como é que você está!” Aos poucos, na representação teatral, através do que é sugerido pelos sons (ruídos e música incidental com notas que se escandem e pontuam as palavras em alternância rítmica, marcando a aparição de cada momento, provocando efeitos de suspensão crescente e progressiva no tempo), projetamos, nessa escuridão em volta, as inúmeras possibilidades de espaços vindos de nosso imaginário particular e individual em confluência com o presenciado. Um espaço fluído e abstrato, que muda e se refaz a cada instante, de acordo com o que se pensa e se imagina, como se flutuássemos no interior dos pensamentos das personagens, em seus (e nossos) sonhos, medos e emoções profundas e contraditórias, oscilantes. Em que igreja nos encontramos, que ponto exato da igreja é este? – em qual sacristia? Aliás, trata-se mesmo de uma igreja? As próprias personagens começam a duvidar do espaço onde creem estar: através de um travelling circular, a mais jovem pergunta à outra, que tem a experiência do mundo: “-A senhora sabe como é que se faz para sair deste lugar estranho? Isso aqui nem parece uma igreja, parece mais um hospício.” Subitamente, estamos numa estação de trem? – (pela forma em que ambas as personagens aparecem, na abertura e fechamento do Ato 2, sentadas lado a lado, como no banco de espera de uma estação, ao som de uma locomotiva em marcha). Ou ainda, em outro salto inesperado no espaço e no tempo, trata-se, de fato, do topo de uma colina onde elas se situam e conversam? – (quando elas reaparecem no topo de um morro, singularmente, situado dentro do estúdio). Espaços imaginários evocados pela mente das duas personagens mescladas à nossa enquanto espectadores, aqui devolvidos à nossa condição de sujeitos, e também à voz do autor que, através delas, exerce suas reflexões e pensamentos sobre o mundo atual, transformando tudo em um eu coletivo - e histórico. Na encenação distanciada e que se assume enquanto tal, sem que se abdique da emoção, entramos no terreno do atemporal, do onírico, e as duas atrizes, travestidas de suas personagens, em tudo antagônicas em suas forças – a mais forte e a mais fraca (em tese), a que tem a experiência do mundo moderno (e portanto um passado), e a moça de província, convicta em seus valores de pequenas e medíocres aspirações, para quem é preferível a vida pequena, de gente simples, sem grandes complicações (“- Se o casamento não der certo na minha vida, eu prefiro ficar sozinha, com as minhas pequenas fantasias.(…) Eu posso não saber muito bem da vida, mas eu sei bem o que me faz bem.(…) Eu prefiro a máscara do interior.”) – acabam por se revelar como reflexos ou desdobramentos uma da outra, trocando por vezes de posição: no Ato 4, a mais forte – Carminha (Patrícia Niedermeier) – ressurge fragilizada, em tom deprimido diante da rememoração acumulada das sucessivas tentativas fracassadas. É então que a generosidade natural da outra, a de “vida menor”, - Jandira (Ana Abbott), – resgata a parcela de humanidade que nos faz dela nos aproximarmos e reconhecermos, também ali, na mocinha simplória, uma grandeza. Ela sabe acolher a outra porque nela vê algo em comum, são como uma só pessoa sob as mesmas condições medíocres a que estão submetidas. “-Mas a senhora não é um palhaço!” – ao dar-se conta da tristeza que abate a companheira de infortúnio. “- Eu sou apenas uma idiota como todas as outras, eu não estou casando de véu e grinalda como todo mundo? (…) Eu sou… eu sou igual a você!” – já lhe reconhecera Carminha no final do Ato 2. Temos então as duas faces de um mesmo ser. Estabelece-se uma ambiguidade no modo de olhar: o olhar do autor, seu cinema, não julga, mas suscita a compaixão pelo humano.
Destaca-se, no filme, a habilidade com que os ruídos, o silêncio e a música pontuam, preparam, comentam e funcionam como catapultas para que as palavras sejam lançadas e caiam diretamente em nossos ouvidos. Não se trata obviamente do ilusionismo do século XIX, um dos aspectos do cinema ao qual acabamos nos confinando regressivamente nesse início de século XXI. Desde as imagens de abertura – (uma pálpebra de mulher que se abre, um lábio que se pinta, uma pálpebra que se fecha – a mais forte, Carminha, no corpo de Patrícia Niedermeir, atriz de amplos recursos talhada para a tragédia -, os adereços – colar, pulseiras, destacados – ela sendo vestida pelas camareiras), – temos um duplo caminho de leitura possível: pode se tratar tanto da personagem sendo vestida para a cerimônia, quanto da atriz sendo vestida para sua personagem. Este mesmo vestido que no Ato 4 cairá, libertando ambas as noivas da armadura que um sistema de hipocrisias nos impõe para, na nudez de seus corpos, na entrega de um gozo mútuo entrevisto no escuro e nos sons, deixar-se brotar o imaginário lúdico da infância, a liberdade de devanear-se em uma brincadeira onde pintam palavras livres na pele uma da outra, resgatando a infância a que pertencemos um dia, hoje soterrada em um mundo burocratizado por normas e leis contrárias a nossa natureza. Também na segunda metade do Ato 3, esta mesma atriz (Patrícia Niedermeier) se descolará da personagem para se dirigir à câmera, ou ao espectador, como num teatro circense, para fazer o comentário distanciado e crítico sobre a outra personagem, seu duplo (Jandira-Ana Abbott), no fundo, personagem central do drama, objeto do olhar do autor e meio com o qual ele possa se identificar para, pela voz da primeira, fazer sua crítica do mundo e do sistema que nos rege: “É preciso colocar na vida um pouco de paixão, de revolta, de subjetividade, de desobediência! Não é uma questão de excentricidade mas de verdade!” – diz para a câmera, no tom distanciado, evocando figuras ícones do cinema brasileiro dos anos setenta como Ângela Carne e Osso em A mulher de todos, 1970, Sônia Silk em Copacabana mon amour, 1970, ambos de Rogério Sganzerla, ou ainda, A$$untina das Amérikas, 1973, do próprio autor. Uma personagem que se transforma em figura e que, como tal, passa do estado da individualização para o do coletivo.
Às múltiplas camadas de máscaras da personagem-coringa que é Carminha/Patrícia Niedermeier, nesse registro de distanciamento crítico que vai de Brecht a Pirandello/Artaud/Grotowski, acrescenta-se a sutileza de nuances do rosto de Ana Abbott (Jandira) que vai da mais ingênua fé em valores inócuos que defende com ardor absoluto, ao horror que se lhe apodera diante das coisas que lhe diz a amiga. Seu rosto é capaz de comoção, de empatia, capaz ainda de se surpreender e se desconcertar numa indagação inesperada, expressão de um sentimento que se transfigura numa ideia, na ideia desse sentimento. Atinge-se, portanto, não pela imitação superficial de modelos de comportamento, mas pela exposição de uma ideia dos sentimentos, a arte do pensar as imagens, pensar o mundo, pensar nós mesmos.
Desta forma, as personagens de Dois Casamento$ tornam-se como fantasmas sobreviventes em nossa memória, reflexos de um mesmo eu acossado por forças maiores de um sistema de valores que se lhes impõe. Os diálogos são como ecos de um longo monólogo interior onde os duplos se alternam e se revelam como as faces de um mesmo ser. O ser que pensa o mundo, a voz over que manifesta essa visão de mundo. Se no teatro e no cinema burguês, é o universo psicologista da vida privada quem justifica e comanda a ação, aqui se trata de pensar o mundo através da representação que passa a ser uma leitura ensaística do mundo. O teatro, as representações, as máscaras, os espectros, projeções e reflexos de nossas almas, reflexos da alma do poeta e também, no caso, de uma mesma personagem-atriz narradora que se desdobra em duas (uma vez que tudo pode ser visto sob o prisma desta atriz-narradora da qual a outra é apenas o reflexo), reflexos ambas de um mesmo eu que sente e pensa o mundo, reflexos de um nosso eu. Como em August Strindberg, onde múltiplas personagens espelham a alma de uma só, e como em Anton Tchecov, onde cada qual traz o peso de um passado, sendo passível, portanto, de várias outras identidades anteriores (como as várias identidades de O bandido da luz vermelha, Rogério Sganzerla, 1968, os vários estágios de consciência por que passam Manoel e Rosa em Deus e o Diabo na terra do sol, Glauber Rocha, 1963, cada momento como apenas um estágio – ou uma fase – da personagem, a consciência do efêmero ao invés do mito da felicidade eterna).
Não se trata de ilustração de anedotas para tapear o tempo, mas de se pensar a origem mítica de problemas que nos afligem, para além do masculino e do feminino. Aqui, como professam os cinemas de Alain Resnais e de Godard, cujas personagens tendem também a representações, a figuras e identidades que se tomam emprestadas umas às outras, mais que as personagens, importam os sentimentos e as emoções que passam por elas.
É o cinema como há muito não se via no cinema brasileiro atual (exceção de Andrea Tonacci, Júlio Bressane, Ruy Guerra, entre outros): cinema como pensamento, reflexão, expressão poética do mundo. Curiosamente, foi produzido de modo independente pelo jovem Cavi Borges. É notório que jamais seria viável através da política dos editais de incentivo à cultura cinematográfica promovida pelo Estado atual. O que nos leva a pensar sobre quais são os reais interesses dos que se propõem a legislar sobre o nosso cinema na atualidade.
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