Ano VII

Dois Dias, Uma Noite

terça-feira abr 7, 2015

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Dois dias, uma noite (Deux Jours, Une Nuit, 2014), de Jean-Pierre e Luc Dardenne

O que chama atenção em Dois dias, uma noite é a artificialidade do mundinho construído pelos Dardenne: rapidamente fica claro que a pequena fábrica funciona como um microcosmo isolado, que ela possui um valor de amostra. Não é por acaso se não há departamento de RH: as regras do jogo devem ser colocadas sobre a mesa como num tabuleiro — cabendo aos trabalhadores exercer o papel de jogadores, optando pelo abono ou pelo reconhecimento da alteridade. A Marion Cotillard, resta cumprir as etapas desta gincana de tempo cronometrado. Ela se esforça, anda de um lado a outro, cai, recompõe-se. Uma heroína presa num sistema.

Ora, este mundo cru, este espaço laboratorial, abstrato, serve para que os Dardenne possam transmitir melhor sua mensagem, para que tudo fique devidamente claro. Vejamos, então, algumas das lições passadas pelos Dardenne:

1) O capital joga os trabalhadores uns contra os outros;

2) O mesmo capital que faz o indivíduo adoecer (Cotillard sofreu depressão) usa este adoecimento como justificativa para dispensar o indivíduo;

3) O indivíduo internaliza os discursos do capital a respeito de sua incapacidade (Cotillard, num momento de fraqueza, dizendo “eles têm razão, não sou capaz etc.”) e de sua inutilidade (“Eu não existo, eu não sou nada”).

Mas os Dardenne não são bobos. Eles sabem bem manter esses discursos nas entrelinhas, no subtexto do filme. Jamais veremos Marion Cotillard fazendo nenhum tipo de pregação socialista aos colegas. Os Dardenne são cineastas (goste-se ou não), e este espaço laboratorial, idealizado do filme serve igualmente a um propósito dramático. A situação (pedir aos outros que abram mão do bônus) já é, em si, muito forte. Diríamos até apelativa, mas felizmente os Dardenne sabem respeitar a dignidade da personagem. Marion Cotillard não tenta convencer ninguém com argumentos ou chantagem emocional. Ela apenas dá a cara a tapa (e o encontro face a face com a personagem às vezes é suficiente para que alguns colegas mudem de ideia). A chave dramática do filme é o enfrentamento desse constrangimento colossal, o manter-se digno à beira da humilhação. Os Dardenne sabem manter o rio no nível certo, sem afundar no miserabilismo nem inflar as cenas com um discurso artificial.

Não é novidade dizer que os Dardenne também dominam como ninguém a arte da perambulação, o realismo de inspiração zavattiniana. E aqui eles tentam nuançar ao máximo o espaço idealizado do filme. Há certa ambição de se retratar o contexto socioeconômico multicultural europeu (lembremos que a fábrica tem valor de amostra). Daí a heterogeneidade do corpo de trabalhadores da fábrica: homens, mulheres, jovens, velhos; o árabe com um segundo emprego nos fins de semana; o rapaz de origem africana (o mais jovem); a mulher com o marido violento. Imigração, feminismo: nada é aleatório no espaço laboratorial do filme.

Como Marion Cotillard, também ficamos presos no mundinho do filme. A armadilha é perfeita demais para que possamos não cair. Vamos junto com ela, nos animamos a cada resposta positiva, perdemos as forças quando os constrangimentos e fracassos se acumulam (me parece bem positivo que o filme dê mais desenvolvimento aos momentos de fraqueza de Cotillard do que aos “confrontos” com os outros personagens, numa feliz inversão de prioridades dramáticas). Mas no final das contas os limites do filme já estão dados desde o início, e, por mais que os Dardenne forcem a estrutura, a visada do filme permanece curta — uma amostra não é o mundo, e seria preciso algum tipo de abertura para que o filme pudesse enxergar além de seu próprio laboratório.

 Calac Nogueira

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Confira também o texto de Cesar Zamberlan sobre o mesmo filme. 

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