TIMBUKTU
Timbuktu (2014), de Abderrahmane Sissako
A contar pelos longas anteriores de Abderrahmane Sissako, A vida sobre a Terra (1998), Heremakono (2002) e Bamako (2006), o retrato de um cotidiano das comunidades rurais africanas se caracteriza como uma das linhas centrais de seu cinema. Cotidiano esse que explora, dentro de uma pobreza material, a riqueza das individualidades culturais do universo das pequenas cidades e vilas de sua Mauritânia natal, assim como do vizinho Mali. Com uma abordagem distante do miserabilismo tão comum quando o cinema retrata os mais diversos universos daquilo que se convencionou chamar de “terceiro mundo”, vemos em Sissako uma rara preocupação em retirar seus elementos poéticos do prosaico, tratando como comum aquilo que muitos olhares enxergariam como “exótico”.
Timbuktu começa com uma ruptura nesse cotidiano. A corriqueira corrida de um animal pela savana é interrompida com um tiro que vem do carro repleto de radicais islâmicos que viria a intervir na rotina dos moradores da cidade que dá título ao filme, como uma força que vai contra o próprio andamento da natureza. Sissako conduz seu trabalho a partir de uma série dessas fissuras impostas por esse elemento estranho. Os novos condutores das leis radicais, apesar de nunca apresentados de uma forma que os vilaniza, mesmo como figuras comuns com suas dúvidas, comportam-se como intrusos que se impõem sem buscar a compreensão das particularidades dos costumes locais.
A fissura vai desaguar de forma mais radical na vida do pequeno pecuarista Kidane, eleito por Sissako como figura central, sob a forma de um incidente entre vizinhos que assume contornos trágicos. Entretanto, no caso de Timbuktu, a abordagem do diretor se apresenta mais forte quando se transfere às pequenas histórias paralelas de diversos moradores da cidade que, de alguma forma, insistem em navegar contra a corrente do fundamentalismo. É nesses momentos em que a já citada veia poética do cineasta deságua em belos momentos de cinema, que surgem mesmo quando têm origem em reciclagem ou citações, a destacar a pelada sem bola que ecoa a célebre partida de tênis de Blow Up (1966), de Antonioni.
Ao que parece, a presença de uma agenda explícita de denúncia social ou política vem a retirar, no caso de Timbuktu, uma parcela da força do cinema de Sissako, que atingiu seu ápice no desenho de um cotidiano que beira o abstrato em Heremakono. Não que as denúncias estivessem ausentes nos filmes anteriores. Bamako era trabalho de forte impacto no que se refere a um conteúdo político. No entanto, essa abordagem surgia de forma bem mais sutil e, por que não dizer mais uma vez, poética. O penetrante canto de Aïssa Maïga em Bamako carregava consigo toda uma herança das contradições oriundas de um histórico de sofrimento e colonização. Num paralelo com a cena de Timbuktu onde uma mulher canta ao ser punida com chibatadas, a contundência das metáforas do filme anterior nunca é equiparada pela abordagem mais crua e realista que vemos no trabalho mais recente.
Pequenas ressalvas feitas e caracterizado o fato de Timbuktu ser o menos impactante entre os longas-metragens de Sissako, vale destacar que ainda estamos diante de um filme repleto de qualidades. Mais que por sua relevância como retrato em microcosmo de uma questão essencial no momento político contemporâneo, vemos o trabalho de um cineasta maduro, com pleno domínio do universo que procura expor e do instrumental da mise-en-scène cinematográfica. Sissako, como sempre, é mestre na composição orgânica de imagens que crescem quando apreciadas em tela grande. Seus planos, mesmo os mais rebuscados, são de rara eficiência no desenho de um conjunto. Como toda obra de seu autor, Timbuktu deve ser acompanhado como momento referencial no contexto do cinema contemporâneo.
Gilberto Silva Jr.
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