Ano VII

Branco Sai

quinta-feira mar 19, 2015

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Branco Sai, Preto Fica (2014), de Adirley Queirós

Não há muitas dúvidas de que a chegada de Adirley Queirós e sua turma é o evento mais interessante e novidadeiro do cinema brasileiro recente. Não porque seus filmes sejam, de longe, os melhores: o mais importante de sua existência no cenário é saber que a cada um de seus projetos o ponto de vista, a perspectiva, será outra, inesperada. Dali sai um cinema feito por gente de um lugar diferente do grosso da produção brasileira.

Adirley fala de um lugar diferente e com um desejo de dizer coisas diferentes, o que se atesta especialmente em seus dois últimos longas: A Cidade é uma Só?, e agora, Branco Sai, Preto Fica. A pergunta e resposta que orientam o princípio criativo desses filmes parecem ser essas: se do jeito que foi feita e por sua relação com o restante do país, Brasília parece coisa de ficção científica, como falar dela e dos lugares que a cercam senão por meio da ficção científica? Ou: se um episódio de violência policial é tão absurdo para parecer verdade, como não falar verdades senão por meio do absurdo, de “inverdades”?

Em Branco Sai, Preto Fica, a ficção científica se estabelece no seguinte registro: um investigador (Dilmar Durães) vem do ano de 2076 para o passado com o objetivo de investigar crimes do Estado brasileiro contra as populações periféricas. Na busca por reunir provas, intercepta a frequência de uma rádio, na qual o locutor (Marquim do Tropa) toca música black e compartilha com os ouvintes memórias do passado, em especial um evento traumático: como ficou paralítico ao levar um tiro da polícia que invadiu um bailinho em 1986. Além da rádio, o locutor prepara uma estranha engenhoca parecida com um foguete na qual pretende jogar em Brasília tudo aquilo que é tido como feio e não-sofisticado produzido em Ceilândia. Na missão, terá a ajuda de um antigo parceiro (Shockito), que divide o tempo manejando seu negócio de pernas mecânicas (ele teve a perna amputado no mesmo episódio do locutor) e imaginando histórias de super-herói.

Uma das chaves que determina o prazer da experiência está em como o filme se constroi como uma “caricatura verossímel” – sim, isso soa como um oxímoro: por se fazer pelo exagero, a caricatura nunca será verossímel, mas justamente é isso que faz possível ressaltar os elementos de verdade que o registro realista não alcançaria. Talvez o principal signo dessa “caricatura verossímel” seja a questão dos passaportes que os habitantes de Ceilândia precisam para entrar em Brasília (ou como dizem os personagens, “na Brasília”). No mundo real, essa caricatura é inverossímel: ambas as cidades pertencem ao mesmo país, não constituem território estrangeiro. No mundo das relações sociais e econômicas, verossímel: revela um mal estar de “eles” e “nós”, uma teia invisível que aprisiona os de fora como aqueles que vêm para Brasília, mas que não sentem a cidade como deles, historicamente negligenciados no processo de construção da capital.

Outra chave que faz de Branco Sai, Preto Fica um capítulo à parte na cinematografia brasileira, é como ele é um filme social, de relevância, mas sem jamais reger pela cartilha desse tipo de cinema. Aqui, não se está no terreno de asfixia cênica comum a, por exemplo, o cinema de Lúcia Murat. Adirley responde às inquietações com uma elaboração fabular. Quiçá mais importante até que apontar tudo que é surpresa nele (a voz da polícia futurista, a nave espacial, um investigador negro tele-estelar, o escaneamento da perna mecânica ou todos os elementos que dão prazer à experiência (que trilha!), é ressaltar que é no encontro da ficção científica documental com a fábula, que Branco Sai, Preto Fica torna-se o filme especial que é. Porque denota ali uma consciência de limites de atuação no real e um interesse em reescrever uma narrativa de resposta com outros símbolos (o foguete, a antológica dança do jumento). É um longa-metragem político que não romantiza suas próprias chances de atuação. Não há melhor exemplo disso do que o momento da explosão retratada em quadrinhos. Como se o filme nos dissesse: na impossilidade do ato, um gesto poderoso é fantasiar o ato. Se não existe, a gente inventa. Controlam a circulação dos nossos corpos, mas não nossas cabeças.

Mas além desses elementos de força e de tudo que coloca esse cinema num lugar de merecido destaque, Branco Sai, Preto Fica tem também suas fraquezas. O mais forte dos incômodos é seu ritmo e uma desconfortável sensação de que bem no miolo ele para de andar e gira em círculos – sensação acentuada agora na revisão. Se até o momento em que a chefe da missão se comunica com o investigador o filme surpreendia e apresentava sempre elementos novos – articulando-os com firmeza –, dessa passagem até a entrada do DJ Jamaika, ele torna-se repetitivo.

O que não é lá tão surpreendente, já que tanto pela ousadia de diálogos de gêneros e pelas condições de produção, Branco Sai, Preto Fica é bastante difícil de colocar de pé. O personagem Sartana, por exemplo, por vezes deixa de ser uma matéria interessante ao conjunto para se tornar apenas ilustração de uma ideia amputação que vai além do aspecto físico (dançar é recriar o mundo, é reafirmar “eu sou”, e perder uma perna é tornar-se desprovido dessa potência). Muito por conta dessa alternância de força em seu miolo até o ato de conclusão, em ambas as sessões fiquei cansado, o que aponta para algo não acidental ou que depende das condições físicas de apreciação, mas da própria forma do filme (claro que esse diagnóstico é subjetivo).

Ainda que falho, Branco Sai, Preto Fica é marcante. Aponta para outras possibilidades de um cinema negro no Brasil (ainda que Adirley seja, ele mesmo, branco); de um cinema periférico a inverter o ponto de vista sob o qual enfrenta-se o mundo, falando de coisas do outro lado da ponte; e dá esperanças para o cinema brasileiro dos próximos anos: expectativas de que, com ele no pedaço, ainda teremos mais e mais uma matéria bruta e sua transformação em forma cinematográfica de fato relevantes.

Heitor Augusto

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