Ano VII

O Destino de Júpiter

quinta-feira fev 26, 2015

jupiter

O Destino de Júpiter (Jupiter Ascending, 2015), de Andy e Lana Wachowski

Júpiter, a personagem de Mila Kunis, descobre, ao longo da narrativa, ser a dona do universo. No fim do filme, a jovem levanta às 4h da manhã e segue para o seu local de trabalho – banheiros dos outros – e, alegremente, limpa a privada. “Isso é o que acontece quando se lê Marx muito jovem”, disse Lana Wachowski sobre o caráter ideológico de O Destino de Júpiter, em entrevista para promover o mais recente produto dos diretores de Matrix. Isso é o que acontece quando se lê Marx muito jovem – e nunca mais retoma-se a leitura, deve-se acrescentar.

Em um filme tão preocupado com mensagens humanistas, com fazer “crítica ao mercado”, (o planeta Terra é um gigantesco plantation que serve como fonte de negócios para a aristocrata família alienígena que é senhora de todo o universo) é absolutamente desconcertante que a mensagem final seja tão ideologicamente ingênua.  Basicamente o filme nos diz – e o ato de dizer coisas é o que o estrutura – para trabalharmos com alegria e esquecer qualquer tipo de ambição. Marxismo de figurinha de bala Zequinha.

E não é esta a única descaracterização feita pelos irmãos. Além de Marx, a mitologia romana é arbitrariamente deturpada e o poderoso deus Júpiter é transformado na passiva dondoca interpretada por Kunis, que a todo instante precisa ser salva pelo príncipe encantado de roller. É aviltante que depois de Star Wars alguém seja capaz de realizar uma novela espacial com personagem feminina incapaz de tomar parte da ação, incapaz de ser algo além de um objeto de motivação para o príncipe encantado. Eis o pior tipo de retrógrado: aquele que se esconde por trás do humanismo de fachada.

Outra deturpação está na idéia da jornada: todo o senso de aventura que se espera de uma fantasia espacial é trocado por uma passividade atroz da protagonista  - e que se estende ao público. O Destino de Júpiter é uma releitura de space opera que não mira o espaço, as nebulosas e os mistérios dos buracos negros. Mira a espiral que se forma na água quando se dá a descarga.

A interpretação distanciada de Kunis acentua a passividade – ou, quem sabe, a passividade gere a abordagem distanciada por parte da atriz –, e metade do longa-metragem é preenchido pela jovem recebendo um fluxo de informações verbais acerca do universo de raças alienígenas e, em seguida, engatando uma pergunta, que leva a outro fluxo de informações, desta vez explicada de maneira mais didática. Não é deixado qualquer espaço para que Júpiter – e, novamente, o público – possa caminhar pelo desconhecido e entendê-lo a sua maneira. A relação entre Júpiter e a do príncipe encantado encarnado por Channing Tatum não é de futuros amantes, e sim a de um estudante ávido por colar e o dicionário. Não existe descoberta na relação dos dois; o universo, aqui, não é um lugar a ser explorado às cegas, é um passeio, com audiodescrição. Assim como não o há no universo amoroso: a relação dos dois é puramente protocolar. Qual a intenção de construir um interesse romântico no filme, se o ato é tratado com tamanha burocracia? A única resposta plausível é a da adequação: O Destino de Júpiter precisa enquadrar-se nas normas do mercado. O mesmo mercado ao qual os diretores (supostamente) criticam.

Alguns críticos, cuja pena alcança 140 caracteres apenas, podem enxergar aí uma operação subversiva por parte dos Wachowskis. Dar ao relacionamento dos dois um funcionamento mecânico seria chamar atenção do público para o ridículo da própria convenção, seguida obsessivamente por Hollywood, que precisa formar casais em todo filme. O “problema” deste argumento estaria no encerramento de O Destino de Júpiter: nosso crítico limitado teria de ignorar o plano final, que, ao mostrar o voo do anjo Tatum, tenta conjurar mágica em um coelho que permaneceu morto dentro da cartola durante toda a projeção.

Mas, é possível, sim, dizer que os Wachowskis sejam subversivos. Os irmãos subvertem a qualidade, quando demonstram pouquíssima capacidade de articular um jogo de plano e contra plano que envolve três personagens, como na cena em que os três irmãos Abrasax encontram-se pela primeira vez. Closes sem harmonia, remendados por uma montagem sem fluidez, inundam a tela de feiúra. Mais grave ainda são as cenas de ação, completamente falhas em estabelecer uma mínima geografia do olhar: vagueamos pelos planos sem qualquer rumo, planos esses inteiramente contaminados pelo vírus que limita a paleta de cores a azul e laranja e emprega às imagens a mesma cara genérica dos outros mil e um filmes-zumbi de ação hollywoodianos (os filmes são como os zumbis de George Romero, todos pintados da mesma cor, caminhando sem vida pelo shopping). Não bastasse a doença do azul/laranja, aflige as estruturas de O Destino de Júpiter uma espécie de Lesão por Esforço Repetitivo: inexplicavelmente, as dois grandes clímax são sequências de ação configuradas da mesmíssima maneira. Na primeira, Júpiter está confinada e, evidentemente, sendo forçada a fazer algo que não quer. Precisa ser salva pelo anjo, que vem do espaço e, para cumprir seu objetivo, precisa atravessa uma barreira física. Na segunda, Júpiter está confinada e, evidentemente, sendo forçada a fazer algo que não quer. Precisa ser salva pelo anjo, que vem do espaço e, para cumprir seu objetivo, precisa atravessar uma barreira física. Criatividade e inventividade, em O Destino de Júpiter, limitam-se aos penteados e aos figurinos.

Quem reprovaria o crítico que fizesse uma analogia entre o caráter retrogrado e formatado (e moralmente questionável, como provou-se este ano) do carnaval  e O Destino de Júpiter?

Wellington Sari

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br