Birdman
Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância (Birdman or The Unexpected Virtue of Ignorance, 2014), de Alexandro Gonzáles Iñárritu
Quando foi interrompida a parceria entre o diretor Alejandro Gonzáles Iñárritu e o roteirista de seus três primeiros longas, Guillermo Arriaga, surgiu a esperança de que a obra do cineasta conseguisse subsequentemente se afastar da noção de fatalismo e das ambições de transcendência da realidade que a impregnavam até então e que se repetiam em outros roteiros construídos por Arriaga. A chegada de Biutiful (2010) frustrou tais expectativas, demonstrando que a visão de mundo de Iñárritu já se encontrava contaminada de forma irreversível pelas características citadas.
Há que se louvar, ao menos partindo de uma percepção inicial, que aquela que parecia ser a proposta original do argumento de Birdman trouxesse alguns elementos de renovação à obra do mexicano. Teríamos aí uma comédia que, partindo de um universo de atores, faria uma crítica supostamente afiada que se estenderia à indústria americana do entretenimento como um todo. O arquetípico protagonista, ator hoje esquecido, que se consagrara como astro em filmes sobre um superherói, e que sonha em retomar o prestígio dirigindo e protagonizando uma peça dramática na Broadway, parece dar panos para manga em fornecer um desenvolvimento às aparentes idéias e ambições do argumento, caso estas fossem impregnadas do humor e ironia a elas adequado. A escalação de Michael Keaton para viver (e poucas vezes o termo se encaixaria tão bem na seleção de um ator para um papel) o protagonista Riggan Thomson se mostra de uma felicidade ímpar, em função não somente do talento do intérprete, como também pelos possíveis paralelos a serem explorados pelas trajetórias de ator e personagem.
Os momentos iniciais do filme conseguem transmitir uma boa imersão no universo de Riggan e do teatro onde ensaia seu espetáculo a poucos dias da estréia. Temos um roteiro (escrito por Iñárritu e outros 3 parceiros) que parece privilegiar a palavra, aparentemente se encaixando numa proposta “teatral” do cineasta, que optou por filmar em apenas um longo aparente plano-sequência. Com o andamento de Birdman, o que passamos a observar no entanto, é que a maioria das propostas idealizadas não conseguem fluir em toda sua plenitude.
Há uma indecisão patente no que se refere à composição de muitos personagens (a atriz de Naomi Watts ou o empresário de Zach Galafianakis, por exemplo) que, assim como Riggan, se propõem arquétipos, mas pouco conseguem elevar-se acima do patamar dos clichês. Ou se situar ainda abaixo deles, como é o caso da irascível crítica teatral, que exagera a tão decantada e preconceituosa visão negativa do resenhista como uma figura rancorosa e parcial. Mesmo que muitas situações e diálogos se apresentem minimamente interessantes ao longo dos dois terços iniciais de projeção, muita coisa vai se perdendo ao longo do filme. Não somente as idéias originais, mas também personagens,como o ator vivido por Edward Norton, cuja proposta de complementação-oposição a Riggan por vezes o torna tão ou mais interessante que o protagonista, que simplesmente desaparece depois das cenas em que atinge uma certa plenitude, aquelas nas quais interage com a filha, vivida por Emma Stone. Se o momento em que Riggan caminha despido pela multidão da Broadway parece sintetizar em poucos minutos toda a proposta de Birdman, quase tudo que vem a seguir, com a caracterização cada vez mais explícita da esquizofrenia de Riggan, parece desnecessário e redundante, causando a impressão de pouco ou nada acrescentar ao que foi mostrado até então, chegando, em muitos momentos, a quase pôr tudo abaixo.
Salta aos olhos o fato de que, para um filme que se propõe uma comédia, carece a Birdman um pouco mais de humor e leveza. Iñárritu acaba por não assumir o filme como uma comédia de fato. O resultado final perde bastante justamente pelo excesso de ambições do cineasta. A idéia de uma paródia que pode ser transcendida para todo um universo da indústria cultural, com seus mitos de sucesso e fracasso, acaba por não render, e, fosse melhor explorado o microcosmo do teatro, sem tantas especulações existenciais, ou mesmo filosóficas, essa paródia poderia vir de forma bem mais impactante. Não somente o conteúdo, mas também as opções formais de Iñárritu acabam por sabotar muito da proposta original. A opção pelo plano sequência infinito, que por um lado dá um bom impulso ao trabalho dos atores, parece servir muito mais ao exibicionismo do diretor que a qualquer outra coisa, retirando muito da leveza desejada à comédia, conferindo ao filme um excesso de densidade quase sempre pouco adequado. Essa densidade indesejável é acentuada ainda mais pela onipresente trilha musical limitada a uma bateria que acelera a tensão por si só excessiva.
Apesar das questões apontadas, o superestimado Birdman ainda vem a se configurar, embora mais pelo que poderia ter sido do que por aquilo que realmente é, no trabalho mais interessante de Iñárritu até o momento. E o principal responsável pelo fato é a entrega do elenco. Não há como negar que o mexicano é extremamente hábil na direção de atores. Estes costumam se integrar às suas propostas, por mais questionáveis que sejam. Keaton faz de Riggan um personagem visceral e inesquecível, mesmo dentro de todas as incongruências concebidas no roteiro. Edward Norton em especial, assim como quase todos os outros, deixa a sensação de um prazer interrompido, com seus personagens-satélites explorados aquém das potencialidades. E não há como deixar de destacar Emma Stone, atriz de talento em evidente ascensão, pela mistura de aspereza e doçura que confere à sua Sam. A imagem final de seus imensos e lindos olhos nos faz deixar a sala de projeção com uma idéia de conforto após esse filme que se completa frustrante, embora pincelado de elementos curiosos.
Gilberto Silva Jr.
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