Anotações sobre o cinema brasileiro de 2014
Anotações sobre o cinema brasileiro em 2014
Por Guilherme Savioli
Avanti Popolo: dentro do nosso top 10 de 2014, um filme brasileiro, Avanti Popolo, de Michael Wahrmann. Num cenário no qual o cinema de autor no Brasil se reduziu ou a filmes de autores consagrados que perseguem uma radicalidade estética em completa dissonância com tendências da moda (caso de Na carne e na alma, de Alberto Salvá; e Educação Sentimental, de Julio Bressane, em 2014) ou, num extremo oposto, a filmes que procuram chancelar automaticamente certas tendências do cinema contemporâneo, o filme de Michael Wahrmann apresenta uma liberdade, uma independência e um comprometimento em plena extinção (tal como fora A cidade é uma só? em 2013, e alguns outros filmes que não estrearam comercialmente em 2014, permanecendo restritos apenas ao circuito de festivais). A sequência que abre o filme bem como a memorável sequência final do pai (Carlos Reichenbach) não conseguindo mais enxergar esgarçam uma dialética que conduz a obra inteira: uma tensão perene entre o olhar de Wahrmann e o olhar de seus personagens. No interstício entre as duas, a dor do luto, o peso da memória e o processamento das ilusões perdidas. Mergulho radical e escancarado num presente e numa realidade que parecem cada vez mais querer cerrar as portas da memória.
Praia do futuro, O lobo atrás da porta e De menor: No pós-retomada duas grandes tendências se desenham na tentativa de legitimação do cinema brasileiro. A primeira, uma tentativa de construção de um cinema brasileiro de qualidade, calcado num naturalismo ancorado num suposto virtuosismo técnico. A segunda, uma legitimação tardia de certas tendências do cinema contemporâneo. O pior filme de Karim Aïnouz representa claramente a segunda tendência e o filme de Fernando Coimbra representa a segunda. A estreia de Caru Alves traz em seu bojo uma certa mistura entre as duas tendências.
A primeira missa ou tristes tropeços, enganos e urucum e Riocorrente: Dois filmes imperfeitos e claramente marcados pela ansiedade. O filme de Ana Carolina traça um ambicioso (mas ao mesmo tempo despretensioso, em certos aspectos) quadro do que se convencionou chamar de período da retomada. Em sua releitura sganzerliana dos ano 1990/2000, a cena em que o interprete do portugês mira o além-mar e questiona sorridente “ó Brasil”, permanece como momento alto de um retrato irregular, em que a ânsia crítica dá vazão muitas vezes a um tom de denúncia trôpego, ansioso. O mesmo pode-se dizer do filme de Sacramento. Para o marcante plano do Tiête pegando fogo, tem-se diversos em que a citação e a ordenação controladora na encenação se sobrepõem ao desejo violento do filme em traçar o panorama de uma São Paulo cindida, marcada por personagens que trafegam sempre à margem. Ansiedade que delineia indelevelmente dois filmes comprometidos com o presente.
Jogo das decapitações e Hoje eu quero voltar sozinho: Dos filmes brasileiros que repercutiram em debates mais polarizados aqui na revista, os dois aqui citados ganharam destaque. Sobre o filme de Bianchi, nada muito a acrescentar, apenas a crença de que ele foi muito mal incompreendido pela crítica e a rememoração de uma sutil observação feita por Sérgio Alpendre, quando do lançamento do filme: apesar dos pesares, Bianchi parece fazer os filmes que quer. Acerca do filme de Daniel Ribeiro, novamente um lamento acerca da crítica: uma blindagem unânime parece ter predominado no debate sobre a obra. Não creio que tenha sido por motivações do tom politicamente correto do filme (linha de argumentação delineada aqui na revista), mas sim por uma certa tara (da crítica em especial) acerca da forma fílmica, da encenação e do projeto de cinema empreendido por Daniel Ribeiro. Inúmeros malabarismo críticos foram feitos a fim de atestar um simples fato: Hoje eu quero voltar sozinho é um filme medíocre e superficial sobre a adolescência, mas devido à falta de tradição em tal segmento no cinema brasileiro, o longa de Daniel Ribeiro é um feito extraordinário. Em suma, nivelamento por baixo, falência da crítica e de seus critérios.
As comédias: Em 2013, Minha mãe é uma peça; em 2014, O candidato honesto, em 2015…. E alguns críticos ainda procuram dar uma resposta ao tempo presente sob a falsa releitura de erros de interpretação do passado. Falsas dicotomias sob a égide de uma indústria cultural que não perdoa o menor dos vacilos.
Ventos de Agosto: o filme-dispositivo e bem intencionado de Um lugar ao sol e Domésticas dá lugar a um pretenso relato acerca da memória e da percepção/apreensão do tempo no novo longa de Gabiriel Mascaro (algo que tende a se aproximar de seu curta A onda traz, o vento leva). Permanecem, contudo, as estratégias e os efeitos do filme-dispositivo, a preemência do olhar do autor que encurrala seus personagens. Em A ideologia alemã, Marx e Engels afirmam “Até agora, o principal defeito de todo o materialismo (inclusive o de Feuerbach) é que o objeto, a realidade, o mundo sensível só são apreendidos sob a forma de objeto ou de intuição, mas não como atividade humana sensível, enquanto práxis, de maneira não subjetiva. Em vista disso, o aspecto ativo foi desenvolvido pelo idealismo, em oposição ao materialismo – mas só abstratamente, pois o idealismo naturalmente não conhece a atividade real, sensível, como tal. Feuerbach quer objetos sensíveis, realmente distintos dos objetos do pensamento; mas ele não considera a própria atividade humana como atividade objetiva”. Tal como em O som ao redor, tem-se em Ventos de Agosto o olhar que se compraz apenas com sua constatação, em suma, o olhar que se compraz consigo mesmo, com seu estilema alcançado. Voltaremos ao assunto em breve.
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