Ano VII

A falência do circuito

segunda-feira jan 26, 2015
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O filme de James Gray passou com as laterais cortadas em alguns cinemas

 

A falência do circuito

por Heitor Augusto

Num cenário razoável, uma lista de melhores do ano destacaria, evidentemente, o que de melhor foi exibido nas salas brasileiras segundo a posição/preferência dos redatores da revista, estabelecendo também diálogo com um leitor que já teria visto tais obras e, com mais calma, poderia repensar, via textos, a sua relação com filmes que lhes havia encantado, frustrado, incomodado etc.

O cenário que vivemos, porém, não está nem perto disso: o que temos são críticas invisíveis sobre filmes invisíveis. Tal lista de melhores acaba funcionando para tirar das profundezas da invisibilidade filmes que tiveram silêncio ao seu redor, que não desfrutaram de uma possibilidade mínima de estabelecer algum lastro com seu público. Uma constatação óbvia, mas ainda assim necssária: o circuito exibidor de cinema de arte já não é um protagonista de organização e fomento de filmes que realmente precisam ser vistos. Ou melhor: se quisermos achar os filmes que realmente importam e que tem algum potencial de quebrar uma lógica efêmera de circulação, buscá-los no circuito exibidor não é garantia de encontrá-los.

Exemplo triste dessa realidade é o filme mais votado entre os redatores da revista, Era Uma Vez em Nova York. Não só o longa de James Gray passou voando pelas salas como foi constantemente mutilado. Diversos foram os relatos de salas que não respeitaram o formato original de tela (2.35:1), “reenquadrando”o filme para a proporção 1.77:1 – a cópia que vi em Brasília no Cine Liberty Mall, durante uma escapada do festival, estava cortada nas bordas e com cores desbotadas (se você acha que a proporção de tela é algo insignificante, vale assistir este breve vídeo com figuras como Martin Scorsese falando da mutilação da imagem).

Como incentivar uma ida à sala de cinema – que é, obviamente, o espaço para o qual tal tipo de filme foi pensado e o lugar no qual a experiência se dá de forma mais completa – se: 1) os horários de exibição são ingratos, com o filme permanecendo pouquíssimo tempo em cartaz e 2) a cópia que circulou pela internet é de qualidade infinitamente maior?

Ou o caso de Jersey Boys – Em Busca da Música, que mesmo tendo a assinatura de um diretor como Clint Eastwood, simplesmente evaporou das salas de cinema? Ou Avanti Poppolo, cujo tempo de permanência em cartaz sequer permite que possamos considerar que ele de fato estreou? Ou a cópia de Holy Motors em 2012, mais pixelada que um arquivo de 500MB quando projetado numa tela de 60 polegadas?

Os espaços de pensamento crítico devem parar de lidar com um filme ou considerar sua existência apenas quando ele alcança o circuito exibidor. Se o circuito exibidor defende-se dizendo que é um negócio – o que é fato – e que não faz caridade, e que precisa colocar o filme que o público quer, que é necessário enfiar o preço dos ingressos nas alturas etc, já não faz mais sentido considerar o início e o fim da vida de um filme quando ele entra ou sai de cartaz.

Nada de novo em tal afirmação, já que os anos 2000 assistiram justamente uma intensificação na circulação via compartilhamento e tecnologia P2P. Porém, ainda assim repetimos a lógica de exibição: listas de melhores e premiações consideram, quase sempre, apenas obras que estrearam formalmente – este ano, aqui na Interlúdio, como também aconteceu na ]Janela[, incluiu-se indicação de filmes que não “estrearam”.

Esperar o circuito de arte – que, a propósito, encolhe, enquanto os multiplex se expandem – apontar o filme que merece ser visto é simplesmente abster-se de ter um repertório com uma quantidade razoável de obras relevantes. Pela pressão do mercado já falada aqui e também porque o público de cinema aqui em São Paulo (não só o daqui, mas é esse que conheço com mais proximidade) é de uma covardia tremenda e de uma preguiça sem tamanho, mostrando disposição só para as coqueluches do momento – leia-se Relatos Selvagens. Forma-se esse círculo do qual não se vê saída: filmes estreiam na lógica que torna necessária uma bilhteria arrasadora no primeiro fim de semana, público não aparece, filme some. Fim de sua existência.

Na crítica, que é só um pedaço pequeno dessa relação, precisamos encontrar meios de estender e ampliar a vida dos filmes para além dessa lógica de consumo en passant. Pautar nossas reflexões para além do que o circuito nos oferece. Pois no momento em que até diretores-grife – um De Palma, cujos Guerra sem Cortes e Passion permanecem inéditos – são tratados como espectros na lógica de circulação de cinema, então algo está gravemente podre.

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