Ano VII

Depois da Chuva

sexta-feira jan 23, 2015

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Depois da Chuva (2013), de Cláudio Marques e Marília Hughes

Das várias imagens míticas do Cinema Marginal uma das que ficam na memória é a do herói “vagabundo” de Meteorango Kid – O Herói Intergalático (1969) lendo gibi no meio de uma assembleia estudantil, afrontando a seriedade da roda, tratando-a como uma imensa bobagem. Quando o jovem cabeludo de Depois da Chuva também passa por detrás de um grupo de jovens com muitas espinhas na cara (estamos em 1984, discutem se devem aceitar ou não uma conciliação com a diretoria da escola para a votação do grêmio estudantil) e diz algo como “Votem nulo. Não me matem de tédio”, essas duas memórias se fundem. Depois da Chuva, tal como Meteorango Kid, será um filme sobre os desviantes do controle social.

Mencionar “desviantes” é trazer também para a análise Tatuagem, de Hilton Lacerda, que fala do presente ao pensar um passado a partir dos que não atendem às expectativas oficiais (um grupo de teatro à margem da margem seja na localização, seja nas escolhas estéticas). Depois da Chuva, assim como Tatuagem, especula sobre o presente ao pensar um capítulo do passado recente: a transição do fim oficial da Ditadura para a derrota nas Diretas Já. Ali se situam os jovens de seu filme.

Seria possível trazer ainda um terceiro filme para o diálogo com este que é o primeiro longa de Marília Hughes e Cláudio Marques: O Príncipe, de Ugo Giorgetti, que é, tal como Depois da Chuva, uma tragédia sobre o Brasil de hoje – com a diferença que “hoje” em Giorgetti era 2002, período pré-Lula. (Num exercício de imaginação, o jovem secretário de finanças do grêmio estudantil é o espelho adolescente do deprimente personagem de Ewerton de Castro em Giorgetti).

Mas pode-se pensar Depois da Chuva como um prolongamento mais complexo dessa obra de Giorgetti. Se o realizador paulistano trabalha a sugestão do desconforto (há anos exilado na Europa, o protagonista volta ao Brasil para ver os amigos do passado e se decepciona brutalmente com o que sua geração se tornou), em Depois da Chuva a abundância do desconforto é uma condição sine qua non para a existência do filme.

Tal percepção obriga a falar dessa sua primeira qualidade: Depois da Chuva é um filme atordoante. Muito. Tanto que se torna difícil escrever sobre ele durante um festival de cinema, seja pelo ritmo puxado das diversas sessões diárias, seja porque invariavelmente pensamos, no inconsciente, os filmes no universo da seleção do festival, ou seja, atribuindo méritos em relação a seus pares. Não me parece um filme perfeito, mas sua força é tão latente que nos dá vontade de esquecer de tudo e falar só do que é força no filme, não fraqueza.

Retomo a ideia de ser um filme sobre os desviantes, conceito que esbarra em João Silvério Trevisan, seja do ponto de vista da sexualidade por um livro como Devassos no Paraíso ou além, especialmente em seu único longa Orgia ou o Homem que Deu Cria (1970). Ali lá havia uma trupe de perdidos que se juntam por afinidades e que vivem às margens do mundo. Em Depois da Chuva temos esses três garotos, espécie de terroristas ideológicos, que se recusam a aceitarem a falsa felicidade de 1984, a participarem da festa da democracia.

A sequência do festival de música no colégio dos garotos traduz esse sentimento. Primeiro assistimos a um menino tocando Pra não dizer que não falei das flores, acompanhado pelo mar de braços da plateia que balança da esquerda para direita, da direita para esquerda, embalada como num show do U2 – faltou apenas acender o isqueiro ou a luz do iPhone. Em seguida, apresenta-se a banda dos meninos, que berra tanto que faz um som parecido com gelo no liquidificador, como define um deles.

A expectativa nacional diz: unamos as mãos para celebrar porque é hora de festa. Os desviantes dizem: é preciso berrar para romper a farsa porque isso está uma merda. Com essa belíssima passagem podemos encará-lo como um filme interessado no passado. Ou não. O que impede de trocar 1984 por 2002, da euforia pela eleição de uma figura que polariza a esquerda há três décadas? Não esqueçamos de como ainda é difícil problematizar Lula, criticar dentro da própria esquerda seu complexo projeto de conciliação e amaciamento do conflito de classes porque estamos sempre rodeados pelo medo de que a direita vai se aproveitar da brecha e penetrar.

Mas a excessiva leitura alegórica deste texto talvez dê a impressão de que ele trabalhe num registro de dramaturgia mais engessado, pouco criativo, desconectado com as possibilidades do cinema contemporâneo. Não é verdade. Há algo encantador desse filme justamente na dramaturgia, mas que ainda paira um tanto inclassificável. Talvez um trabalho anterior às filmagens que resulta num companheirismo dos atores a dar riqueza às relações entre os personagens; talvez seja algo do campo da própria encenação, a mescla entre planos introspectivos com outros de esgar, de grito – roubando um conceito da música; talvez seja o som, em especial a trilha, propondo uma leitura muito linda do que seria a imagem própria a acompanhar um punk (pois a sensação é justamente a de que não fosse essa música teríamos um filme distinto).

Depois da Chuva trafega por zonas deveras exploradas pelos filmes de aprendizado – pois se quisermos enquadrar seu gênero essa poderia ser uma definição próxima – e flerta com uma facilitação da experiência, com uma redução justamente do desconforto do diagnóstico. Temos um pai ausente; um garoto que precisa aprender a crescer num ambiente hostil; um mentor mais velho; uma paixão que ajuda atravessar os momentos mais difíceis; o choque com a autoridade dos adultos.

Ainda assim, este não é um filme de aprendizado – não existe paralelo possível entre Depois da Chuva e As Melhores Coisas do Mundo. É uma coisa outra. Estabelece paralelos entre a História e o tecido fílmico, mas não de forma ilustrativa ou guiado por uma necessidade de um roteiro didático, preocupado em informar o que acontecia no Brasil quando certos eventos acontecem com o personagem. Trata-se de uma coisa, História e filme. É alegoria, mas não trabalha num registro popular, e sim pop. Está localizado no passado, mas a forma que realça a degradação da fábrica no trecho final, implicando um diagnóstico trágico, só se confirma no presente ao vermos as damas de preto globais em “luto pelo Brasil”.

Heitor Augusto

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