Cinema brasileiro…
Cinema brasileiro, vitrines e controles
Por Sindoval Aguiar e Luiz Rosemberg Filho
Nunca tivemos um cinema nacional pleno e sustentável. Aquele que garantisse a produção, distribuição e a exibição. O esforço para a realização e a sobrevivência de um filme, entre nós, foi sempre muito difícil. Tivemos muitas tentativas louváveis e honrosas. Inútil citá-las aqui. E ao longo do tempo fomos aprendendo e constatando que todas as nossas tentativas eram inúteis e bloqueadas na origem, a de nossa falta de formação cujos princípios também são muitos e diversos, clivagens da nossa história e do ser humano que fomos produzindo, como grupos e dispersões. A começar pela colônia, a escravidão de séculos, a negação do índio, de nossa formação como País, a base mercantilista e uma série de tantas deformações que nos afetam até hoje. Como o preconceito, a falta de identidade e a separação interna, econômica, de classes e de princípios, notadamente culturais, como uma negação de nós mesmos. O que estamos tentando reaver, com imensa dificuldade. Carregando um passado pesado e tentando superá-lo com os avanços da modernidade, claro, aos trancos. E tentar levantar as condições de nossa deformação e de nossas dificuldades no cinema, mais nos prejudicamos e nos isolamos.
Porque a situação se consolida em estamentos, burocracias e os fundamentos do poder, onde a correlação de formas para alguma mudança não existe. Apenas como memória é bom lembrar o passado: Geicine, Concine, INC (Instituto Nacional do Cinema), Embrafilme e, hoje, Ancine. Em tudo, corporações correspondendo a clivagens, fragmentos de uma mesma história, de uma estrutura orgânica, antropológica, humana, de princípios e índoles que poderiam ser analisados sem qualquer resultado para o momento. Melhor calar! Ou continuar como uma expressão do possível. Melhor, então, pedir socorro à linguagem, à filologia, sem muita paráfrase. Sem esquecer de que em nossa linguagem está sempre presente um dominador, um deformador, a quem recusamos reconhecer por uma série de fatores delicados e implicativos. Interesses, cooptações, entrega, desmandos… Compensação e submissão. Se antes se podia falar, hoje mais ainda. Nunca tivemos um ciclo de linguagem tão dominado e pervertido. Pela falta de espaço e pela falta de coragem, além da alienação dominante como formação e desinformação. Nunca tanto reduzida na significação de valores, só neoliberais globalizantes e mobralizantes, como negação total do saber em nossa condição ainda tão primitiva de conhecimento de origens, princípios e fins. E de nosso esforço no cinema.
Como se vê, as mesmas condições do passado vigorando ainda: a institucionalização de barreiras, grupos de interesse em ação junto aos elementos do cinema, além da negativa sociedade organizada assim em seus grupos de força e poder, ONGS, empresas, organizações sociais, etc. Tudo ganhando um foro legal sob a ótica implacável do capital bárbaro. E com o cinema facilitando por ser o charme da burguesia e da “esquerda” capitalista e antropofágica. E aqueles com alguma formação, mas de péssima informação, sendo levados pela falsa bandeira da cultura, da liberdade e do processo criativo do cinema. Que encanta e fetichiza, quase mito. Para nós, de tantas lutas, tanto faz o visível como o invisível. E para os pouco experientes, contam mais o sonho, o sonhar e o filmar os próprios pés.
Somos os indígenas avançados atraídos pela tecnologia digital espacial em tempo real, embora tristemente transitória. Desse jeito o cinema virou droga a excitar, independente de lógica, razão ou qualquer estágio cultural. O que está contando para o momento é o esvaziamento, carga nova a ser explodida em nossas próprias mãos. De qualquer forma o cinema, o bom cinema, tem resistido. Como a música e a boa cultura visível e invisível dos guetos e dos apertos. Nosso País é isso e, infelizmente, o mercantilismo aqui não soube nos levar, mas soube nos negar, produzindo a pior elite do planeta e que se barbariza cada vez mais. E assim estamos onde estamos. E o cinema também. Na condição de extremos, como a nossa riqueza e imensa pobreza, inalcançável sob esta ótica mercantilista de 1500 a que nos acostumamos. Preconceitos e escravidão econômica e cultural, onde somos sempre as mãos e os pés do senhor e jamais a cabeça, fingindo aproximações e igualdades, uma democracia racial branca. Esta é a nossa elite, a elite que nunca deixou de nos dominar e dominou também o cinema. E se pudessem nos teriam legado um cinema de Mobral, de morte rápida, como a cultura que impuseram aos idosos na ditadura de 64 a 85, uma espécie de alfabetização para que pudéssemos assimilar mais integralmente o cinema americano da elite, do Oscar e o da cultura de enlatados.
Mas, felizmente, o próprio cinema, mesmo dominado, sabe reagir, e a cultura não anda para trás, embora retardatárias, esperneia e avança. Na tela ou fora da tela. Como a nossa grande cultura dos guetos, musical, religiosa, étnica, primitiva. Tambores e sons sinestesiando o tempo. Contornando para um oportuno retorno. E o cinema do nosso País possui como centro de resistência a nossa própria cultura: primitiva, tribal, negra e indígena, a base de nossa música. Com névoas, as do embranquecimento! Ideias. Muito além do mercado, do entretenimento e além de toda estrutura econômica como pensamento que só tem separado e distanciado em nosso sentido de formação e conhecimento em todo o trajeto em busca de um melhor entendimento. Onde o negro é negro, o índio é índio, o mestiço é mestiço, em sua própria terra, onde se reconhece e tem que ser reconhecido, com cultura, bravura e entendimento. E o nosso cinema tem contribuído assim. Com o reconhecimento de nossas duas e únicas culturas, a índia e a negra, escravizados, resistentes e presentes, nos possibilitando a continuação do ciclo. De formação, aprendizado e elevação de nossos conhecimentos já demonstrados em escalas e valores mais humanos, científicos, culturais, que delegados, os de colonizadores, Corteses e Pizarros.
Sabemos que o tempo não retrocede, mas nada podemos esperar enquanto o nosso processo de formação não se acelerar. De uma relação mais humana para uma de mais humana natureza. A de uma terra que se cuida, se cultiva e se colhe, para o sustento de uma autossustentabilidade. Mas não um lugar onde a cabeça foi esquecida, como um lugar que pensa, mas que se perfura. E se não morrer, fica o buraco, a abertura, o vazio, aguardando o eterno dominador, como os do passado, trazendo as modernidades como um fetiche da eternidade. Toda cultura tem a ver com seu tempo. E com as ideias de seu tempo. Mas as ideias buscam a liberdade para mais conhecimentos e mais convencimentos. E o cinema possui o sentido dessa totalidade. Como diferenças, aprendizados, conhecimento e desenvolvimento. Para um cinema que nunca tivemos e para ver os filmes que nunca pudemos ver. Bloqueados pelo poder de mando e exclusão de exibidores, importadores, distribuidores e programadores, desajustando o passado, o presente e o futuro, cujos tempos são mais do que reais. Os de um processo de evolução, criação e de imaginação. O do sonhar para viver, seja qual for o encontro e o lugar. Ou com quem: Humberto Mauro, Alberto Cavalcanti, Mário Peixoto, Glauber Rocha e, por que não, o nosso Mazzaropi?
(Para Valeska G. Silva)
(os editores agradecem a Marcelo Miranda pela transcrição do artigo)
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