O Abutre
O Abutre (Nightcrawler, 2014), de Dan Gilroy
Desde O Segredo de Brokeback Mountain (ou antes, se considerarmos o fascínio com Donnie Darko em alguns círculos), Jake Gyllenhaal vem subindo degraus sólidos para se transformar em um dos maiores atores de sua geração. Como Louis Bloom, cinegrafista amador sem escrúpulos, talvez tenha alcançado seu ponto máximo. Grande parte do valor de O Abutre, de Dan Gilroy (irmão mais novo de Tony Gilroy), reside na performance de Gyllenhaal, que confere ao personagem uma desafiadora complexidade, entre o doente e o calculista, entre a fragilidade de um solitário e a ganância de um egocêntrico.
Louis é um psicopata, uma espécie de Travis Bickle contaminado, não pelos combates no Vietnã, mas por horas e horas de internet por dia. É a patologia deste século, sabemos. Jason Reitman gasta duas horas em seu filme modorrento (Homens, Mulheres e Filhos) para reiterar isso, enquanto Dan Gilroy deixa esse diagnóstico se formar em nossa cabeça a partir de uma simples informação passada pelo protagonista no meio da narrativa. É de sutilezas, também, que estamos falando, ainda que o protagonista não seja nada sutil em suas estratégias. E como as coisas não são tão simples, a patologia da internet cruza com outra patologia, a do sensacionalismo televisivo alimentado por telespectadores sádicos, numa combinação que justifica o tanto de doença que acompanhamos na tela.
Não há, no cinema americano recente, filme que persegue seu protagonista da forma que faz O Abutre. Ele está em cena durante pelo menos 95% do filme, senão mais. Tudo gira em torno de suas ações. Essa perseguição, portanto, tende a nos chocar num primeiro momento, pois pode se confundir com adesão. Não há um plano que o rejeita ou censura, como a tomada do helicóptero que se afasta de Harry Callahan num momento em que ele tortura um criminoso, indicando a recusa da câmera à ação do protagonista em Perseguidor Implacável, de Don Siegel. Não há sequer um único sinal evidente de que a câmera (o diretor, o filme ou qualquer outra instância) reprova as ações do protagonista. Mas uma vez que compreendemos o tipo de registro, que não é de empatia (isso já sabíamos), nem de interesse por seu suposto lado bom, mas um estudo de caso, da maneira como havia sido Taxi Driver, aceitamos melhor o desfecho, quando o funcionário de Louis é atraído a uma armadilha e vira, ele mesmo, alimento para o sensacionalismo midiático. É o momento mais arriscado do filme, quando tudo quase escorre das mãos do diretor. O que vem a seguir deixa mais clara a ideia, e também o risco.
A força, então, vem bastante de um desconcerto. E esse desconcerto só aumenta à medida que Louis (já apresentado como um cara que não bate muito bem) se revela um monstro guiado pela necessidade mórbida das pessoas. Vemos um dos responsáveis por alimentar o sadismo dos telespectadores, mas vemos também como a discussão tem diversas nuances. É contra a lei o que ele faz? Não se sabe ao certo, mas deveria ser. É antiético? Certamente. É imoral? Sem dúvida. Mas tem total apoio de boa parte da sociedade. Louis seria assim monstruoso se não se sentisse legitimado pelo interesse da diretora do telejornal e, por consequência, pelo público de TV responsável pelo aumento da audiência do horário no canal?
Esse viés faz com que O Abutre encontre a linha que sai de Um Rosto na Multidão (Elia Kazan, 1956) e passe por Rede de Intrigas (Sidney Lumet, 1976). Nos três filmes, de protagonistas bem diferentes entre si, encontramos uma progressão na relação entre a necessidade do escândalo, o arrivismo e a morbidez. O tempo dirá se o filme está à altura dos outros dois filmes (ou pelo menos do filme de Lumet, que tem seu potencial crítico ligeiramente afetado pelo absurdo), e se Gilroy, como diretor, continuará elevando a média sofrível da Hollywood atual.
Sérgio Alpendre
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