Ano VII

Saint Laurent

terça-feira nov 25, 2014

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Saint Laurent (2014), de Bertrand Bonello

Já no começo, um corpo caído, sujo, desalinhado, misturado entre areia, pedras e concretos. Desde o princípio, Bertrand Bonello, cineasta afeito aos comportamentos humanos fora dos padrões, um contador de histórias que não titubeia em embarcar no desejo dos seus personagens, deixa claro que, apesar de fazer um filme sobre um protagonista de um mundo plástico nas aparências, o que lhe interessa não é promover um glamour, e sim observar esse mesmo mundo pelas entrelinhas. Saint Laurent não é um filme sobre a edificação de uma imagem, mas sim a sua desconstrução e, inevitavelmente, destruição.

O desmoronamento da aparência e a consciência de que a imagem é o laço que reúne os personagens está presente em detalhes na primeira parte do longa e se torna dominante na segunda parte. Na primeira, vê-se  o estilista no topo, hábil a negociar seu trânsito nas aparências (o corpo loiro que dança); na segunda, a crise, a queda, a reconstrução artística e a degradação física. E é justamente no momento mais frágil, quando a imagem aparente já não mais importa, que Yves Saint Laurent cria sua experiência estética mais forte (o desfile de 1976), no qual, nos sugere o filme, ele consegue se conectar com Matisse.

Podemos até, merecidamente, elogiar a metamorfose de Gaspard Ulliel em YSL. Contudo, são as presenças de Helmut Berger e Louis Garrel que acentuam essa dimensão de descontrução da imagem aparente dentro de Saint Laurent. Garrel entra no filme de maneira a deslocar o eixo narrativo de YSL, que sai da administração do caos pelo seu parceiro, Pierre Bergé, para um mergulho profundo no fetiche e na crise.

Mas o que interessa comentar aqui não é necessariamente os dotes de Garrel, mas a sua imagem e sua presença no imaginário cinéfilo. Quem é Garrel, segundo o senso comum? A imagem do homem sexy que não é gostoso, do blasé quase inalcançável: um corpo do qual parece não emanar odor. E é justamente essa imagem que se introduz em Saint Laurent – com o adendo do bigode, que o aproxima do homem misterioso/pulsão de desejo de O Estranho no Lago.

Conforme o filme avança, o que se vê é um desmoronamento da persona cinematográfica de Garrel – não do ator em si, que já se colocou em lugares dramatúrgicos muito interessantes ao trabalhar com o pai, Philippe. É como se Bertrand Bonello tivesse escolhido Garrel justamente para atirar uma pedra na imagem acéptica do homem blasé – e, ao fazê-lo, por consequência as aparências que blindam YSL também desaparecem. Não é acidental, pois, que perto do encerramento, Bonello traga num relance o corpo moribundo de Garrel e escolha justamente dar um close em suas feridas. O diretor canadense foi o primeiro a conseguir nos fazer sentir o cheiro de Garrel.

Há também Helmut Berger, cuja presença agrega ainda mais ao tom reflexivo que o longa adota.  Helmut interpreta o estilista já velho, frágil, só, um “has been”, murmurando palavras quase tão inaudíveis quanto o Kurt Cobain de Gus Van Sant, em Last Days. Em determinado momento, Helmut, na pele de YSL, mira a tevê e assiste a Helmut, o ator, performando em Os Deuses Malditos, de Visconti. É como se Saint Laurent, nesse momento, deixasse de ser um filme sobre YSL e se tornasse uma reflexão sobre a aparência e a passagem do tempo, ou seja, falando de coisas muito mais caras ao cinema do que à moda, que é a “desculpa” de Bonello para abordar, no fim, o próprio cinema.

Além dessas dimensões a respeito de imagem e aparência que Saint Laurent desenvolve, ele é também um filme musical. Tem-se a sensação de que a presença da música antecede, em muitos momentos, a cena. Como se em vez de pensar que canção cairia bem para essa ou aquela sequência, Bonello invertesse a pergunta. A sensibilidade para o tecido sonoro não é novidade na carreira do cineasta, já que no próprio L’Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância ele investiu num hibridismo musical potente (por exemplo, um blues de Lee Moses num filme do haut monde do século 19). Desta vez, a narração musical é ainda melhor, nada interessada em informação temporal ou casual, mas sim na construção de um estado de espírito. Não há cena melhor para ilustrar tal recorte que a ária cadavérica de Henry Purcell, What Power Art Thou (The Cold Genius), interpretada na mesma oitava agudamente sombria que Klaus Nomi gravou no início dos anos 80.

Saint Laurent é um filme de contrabando, que parte de um lugar (moda, glamour) para chegar em outro completamente diferente (imagem, aparência, tempo, música, criação). Uma espécie de filme iconoclasta sobre um ícone. Não é a anticinebiografia, porque há obrigações temporais e de informação, detalhamento e verossimilhança, mas um longa que negocia o tempo inteiro com o espectador a brochante classificação de cinebiografia.

Heitor Augusto

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