Ano VII

Do que vem antes

terça-feira nov 4, 2014

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Do Que Vem Antes (Mula sa Kung Ano ang Noon, 2014), de Lav Diaz

Lav Diaz é um cineasta da História das Filipinas e também uma espécie de cronista cinematográfico capaz de captar uma atmosfera quase invisível que, nos dizem os seus filmes, caracterizam o povo daquela terra marcada por tempestades: resiliência, que toma forma de uma passividade desesperadora para o espectador. A chuva que cai intermitente, torturante, alongando-se no tempo, determina o tom dos personagens. Diaz é um cineasta da passividade.

Do que Vem Antes tem muito de seus filmes anteriores: dilatação do tempo narrativo, personagens que atravessam uma extensa jornada, mulheres vítimas de abuso e com poucas chances de escapatória, entrelaçamento de uma narrativa pequena (personagens com nomes e subjetividade) ao contexto amplo do país (desta vez, início da Era da Corte Marcial, sob a repressão de Ferdinando Marcos), colocar no espectador numa posição que o faça sentir fisicamente o quão mortífera é a resiliência.

Diaz apresenta um vilarejo que, ao longo das mais de cinco horas e meia de projeção, deixa de ser um espaço físico visível, palpável, existente, para se tornar um lugar fantasma, que sequer parece ter existido. Se já sentimos a dor física e moral da passividade em seu cinema com Florentina Hubaldo, CTE, o que se sente agora é o custo histórico que ela causa. Do que Vem Antes é, na verdade, um registro diminuto dos passos silenciosos que levaram ao período mais tenebroso daquele pais.

Ao filmar os tentáculos silenciosos que solaparam as Filipinas entre 1972 e 86, Do que Vem Antes torna-se o reflexo invertido do trabalho mais conhecido de Lav Diaz, Evolução de Uma Família Filipina, um filme de narrativa com grandes acontecimentos (ainda que citar “grandes acontecimentos” para falar do cinema de Diaz soe como um contrassenso). Se neste temos uma família que se desintegra ao longo dos Anos Marcos (e o que vemos nas onze horas de filme são as razoes do esfacelamento), no trabalho mais recente seguimos um lugar que desaparece na iminência da chegada do terror – e é a aceitação passiva, parece nos dizer o filme, que permite o estabelecimento da barbárie.

Nessa jornada, Do que Vem Antes entrega muitos planos poderosos, significativos: a câmera no chão rente ao corpo frágil e violento de Joselina, a repetição do choque das águas contra a pedra supostamente mítica, o cadáver que flutua em fogo, as contradições morais que confrontam/unem o Padre Guido, Itanga e Tony, o plano do fatídico decreto. Curiosamente, carrega também uma certa semelhança com o sertão de Deus e o Diabo na Terra do Sol (especialmente no começo, pela questão da religiosidade), apesar de Diaz e Glauber adotarem procedimentos de encenação bastante distintos.

Pode até soar como fetiche de cinéfilo, que com o intuito de alimentar o ego pode dizer por aí que “eu vi aquele filme de cinco horas” – e na Mostra não faltam aqueles que cultivam o fetiche pelo obscuro. Mas o fluxo de Do que Vem Antes é tão equilibrado e a construção das sequências deveras sólidas que, a despeito da longa duração, o filme jamais se torna enfadonho para um espectador de fato disposto a lidar com uma outra ideia de tempo e duração.

Heitor Augusto 

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