Noites Brancas no Píer
Noites Brancas no Píer (Nuits Blanches sur la Jetée, 2014) de Paul Vecchiali
Há um momento essencial no livro de Dostoyevsky o qual Paul Vecchiali filma de forma quase direta, sem grandes intervenções cênicas ou adaptações sobre o texto original, nesse seu novo filme baseado em Noites Brancas. Trata-se do momento em que Natasha (Astrid Adverbe) comenta com Fiódor (Pascal Cervo) o quão bom seria se as pessoas fossem diretas ao falarem, se elas não dissimulassem ou fizessem rodeios para dizerem o que pensam ou sentem. Tal como na narrativa do livro, isso se passa já em um ponto avançado desta história sobre a relação entre o “Sonhador” e sua amada, porém tudo parece, em retrospecto, se iluminar e uma compreensão até então inaudita se projeta para cada instante posterior da narrativa.
Todo o filme, todo o projeto de adaptação da obra de Dostoyevsky empreendido por Vecchiali cruza esse luminoso momento. É nesse instante que a personagem de Astrid Adverbe verbaliza um sentimento cruel que atravessa todo o filme. Sentimento esse já sondado por Fiódor em suas divagações individuais: ele comenta sobre a impossibilidade de justiça e verdade plenas no embate com o real, bem como sobre a inevitável sensação de se derramar o amor sentido sobre o coração da pessoa amada. Natasha consolida em suas palavras essa sensação de impotência perante o decurso dos eventos. Por oposição e inevitável consequência, tal como nas divagações investigativas de Fiódor, surge a necessidade de se manter sempre resistente: fazer do pensamento e sua encarnação na palavra, no verbo, o último refúgio onde a crítica e a resistência se mostram ainda possíveis.
A epígrafe que abre o filme já anuncia: a escuridão será a luz. Nada mais contraditório, nada mais dialético. É a busca radical por essa contradição – sempre encarnada na matéria, sempre encarnada no humano – que Vecchiali procurará captar em cada instante vivido por essa mulher e esse homem nesse lugar. Espaço, tempo e vida necessariamente suspensos, atitude necessária para a encenação dos perpétuos e quase fantasmáticos encontros descritos por Dostoyevsky.
Redução brutal da matéria que será a obra-prima para seu trabalho: a síntese é – mais do que nunca em sua obra, talvez – um elemento fundamental da mise en scène. A encenação frontal, de cunho marcadamente romanesco, é a opção fundamental de Vecchiali. Romanesco, aliás, que sempre permeou sua obra (basta lembrarmos de filmes como o genial Femmes Femmes, Coups à Coeur ou o mais recente À Vot’ Bon Coeur), mas nunca de forma tão sintética, de forma tão explícita: as luzes que sempre demarcam quem está com a palavra e a fala ritmada do personagem de Pascal Cervo revelam o ato de esculpir na matéria do real, através dessa abordagem romanesca, todos os conflitos, impossibilidades e castrações impostas. A matéria e a linguagem encarnam um perpétuo conflito, sempre irresoluto, sempre resistente (“…seu movimento perpétuo é aquele da minha alma. Por que então não oferece-la meu coração?”, questiona Fiódor).
Numa época em que arte política virou sinônimo de propaganda ideológica ou, em outros casos, um mero decadentismo travestido de cinismo pós- moderno, a atitude de Vecchiali – de atenção extrema ao embate entre uma linguagem resistente e um real sempre implacável – restitui o verdadeiro sentido de uma arte política, assim como poucos e raros resistentes (Straub, Manoel de Oliveira e Bressane, por exemplo). Cinema de palavra, cinema moderno, enfim.
Guilherme Savioli
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