Ano VII

Winter Sleep

sábado mai 9, 2015

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Winter Sleep (Kys Uykusu, 2014), Nuri Bilge Ceylan

Se Climates, Distante e Três Macacos já apontavam algumas qualidades, mas, mais que obras irregulares, eram filmes de excessos no discurso e na forma de narrar. Com Era uma vez em Anatólia, Nuri Bilge Ceylan parece ter encontrado a maturidade. Algo que aconteceu, por exemplo, e recentemente, com Almodóvar após A Flor do meu segredo, e que gerou obras-primas como Carne Trêmula, Tudo sobre minha mãe, Fale com Ela - ainda que as propostas cinematográficas sejam bem diferentes. Com outros cineastas igualmente marcados pelo excesso, penso nos odiosos Iñarritu ou Solondz, essa depuração ou mudança de rumo talvez nunca ocorra. Certo é que Ceylan, com méritos, é – e perdoem os termos – a bola da vez, ou “o cara”, afinal, Era uma vez em Anatólia ganhou o Grande Prêmio do Júri em Cannes e, três anos depois, Winter Sleep levou o Prêmio da crítica e a prestigiada Palma de Ouro no mesmo festival.

Mas o que mudou no cinema de Ceylan? E o que faz o cinema de Ceylan, hoje, mais interessante?

Não existe – e nem se pretende chegar – a resposta, ou a uma resposta, mas é possível traçar linhas de pensamento para entender como a citada depuração no discurso e na forma de narrar tornou os temas presentes na obra de Ceylan menos particulares e mais universais, logo, mais interessantes. Ainda que seu tecido cinematográfico sejam os crimes, conflitos e toda violência descerrada por uma situação limite, o desenho desta situação se tornou menos apelativo e muito mais sutil, muito mais refinado.

Ceylan abriu seu cinema, abriu a cabeça e o plano, e a ideia de plano vale tanto para a imagem em scope, quanto para a profundidade das fábulas que passou a levar à tela. Deu aos filmes, Era uma vez em Anatólia e Winter Sleep, uma dimensão grandiosa, épica como por outras vias são os cinemas de Leone, Ford ou Angelopoulos. O grego, aliás, é um cineasta que aparece muito fortemente em Winter Sleep, só que a composição do quadro é menos pretensiosamente lírica e mais realista, ou seja, aquilo que em Angelopoulos alternava entre o êxito e o risco, parece em Ceylan mais resolvido e comedido. E, assim, regiões da Anatólia como a Capadócia em Winter Sleep enchem a tela para servirem de contraponto aquilo que é mais íntimo no humano, como o pai assassino que desonra ou filho, caso do primeiro filme, ou do pai que busca mostrar ao filho que, embora desgraçado, é, ainda, um homem honrado, situação do segundo filme. Situações dadas, aliás, como plano e contraplano de um filme para outro – se é que é possível pensar em tal articulação dentro do conjunto da obra e não num mesmo filme e sequência.

Além disso, Ceylan trouxe e tem dialogado bem com obras literárias colossais, caso de Dostoiévski, Era uma vez em Anatólia; e de Shakespeare, Voltaire e, sobretudo, Tchecov em Winter Sleep. Neste, numa sequência antológica, dois irmãos, Aydin e Necla, num diálogo tão cruel e honesto, quanto o do pai com a filha em Reis e Rainha de Desplechin, apontam um ao outro a miséria em que vivem e à qual se tornaram. E ambos, como as irmãs de Thecov com Moscou, acabam sonhando com Istambul, cidade fuga para o tão problemático estar em si e achar-se em si.

Esta cena e diálogo não são, no entanto, pontos isolados no filme, existem outras conversas, longas, complexas e memoráveis: a de Aydin com a esposa e também a de Aydin com o seu amigo Suavi e com o professor Levent. Diálogos com divagações filosóficas a cerca de questões morais como a religiosidade, a compaixão, a filantropia, a riqueza, a pobreza, a consciência etc e etc.

Tais momentos mais graves, mais fechados, internos e teatrais são um contraponto aos passeios da câmera e dos personagens pela bela, inóspita e, cada vez mais, gélida paisagem que, aos poucos, enreda os personagens ao imobilismo. Ceylan cerca os como o gelo, e os recoloca na sua condição natural: a de um pequeno ponto frente à natureza selvagem que estes imaginaram domar com a cultura e a civilização. São todos, à sua maneira, como o cavalo selvagem que habitava aquele lugar. Aydin entende isso quando liberta o cavalo recém-capturado e domado, e, entende a si mesmo, quando vê o cão morto na estação e quando não hesita em matar o coelho que habita, como ele e com ele, a paradisíaca margem do rio.

Por expor as fragilidades dos personagens, agora sem se comprazer perversamente com tais dores e nem se aproveitar delas para construir a ideia de mundo à deriva; por mostrar as estranhas entranhas da natureza interna do homem, que longe de domar seus instintos mais selvagens, coloca-se frente a conflitos inconciliáveis e trágicos por excelência; Ceylan, mirando no exemplo de grandes nomes do cinema e da literatura, está se tornando o cineasta mais interessante da atualidade.

Cesar Zamberlan

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Texto de Guilherme Savioli (contra)

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