O Segredo das Águas
O Segredo das Águas (Fatatsume no Mado, 2014), de Naomi Kawase
O mar revolto, um ritual na praia, um afogamento, um carneiro sendo imolado: as primeiras imagens de O Segredo das Águas (Fatatsume no Mado), de Naomi Kawase, dão conta, com enorme poder de síntese, do universo da diretora de Shara e Hotaru, e das ideias que ela tem trabalhado tanto na ficção, quanto no documentário: a força intempestiva da natureza, a relação religiosa do homem com essa força maior, à fragilidade humana diante da (sua) natureza e à morte como dado natural da existência.
Kawase faz um cinema de culto à natureza, um cinema ritual e contemplativo como meio de se chegar à transcendência. Não há pressa naquilo que se busca dizer, por em cena, revelar. Com delicadeza, ela reproduz, a partir de um fluxo de imagens sempre sereno, uma visão de mundo que, longe de ser exótica ou de um prientalismo rigorosamente planejado – caso de um Kim Ki Duk, por exemplo -, fascina, e isso porque consegue estabelecer uma relação integradora entre homem e natureza, colocando o ser humano no seu devido e, porque não, privilegiado lugar.
Em alguns momentos, Kawase nos propicia imagens e situações hipnóticas e muito poéticas, e todo o dispositivo cinematográfico funciona com a mesma magia do instrumento de cordas e da voz dos cantos rituais da adolescente e dos anciões que anunciam a boa morte. Igualmente marcante é a cena de Kioto descobrindo a morte no lamento derradeiro do carneiro ou quando pesa e solto o corpo sobre Kaito no passeio de bicicleta para declarar seu amor.
Não seria exagero apontar, como mostra o pai para a Kioto diante da mãe em transe frente à centenária figueira, que Kawase, como cineasta, também vê aquilo que os outros não veem. Seu cinema, felizmente preso às tradições japonesas milenares, mantém-se fiel a essência dessa cultura, a interessa menos a parte dela que se ocidentalizou. Seu principal tema é a tenuidade da vida, as sombras que nenhuma luz consegue dissipar, o que remete a Elogio da Sombra, belo ensaio do escritor Junichiro Tanizaki cujo incipit merece ser transcrito: “No ocidente o mais poderoso aliado da beleza sempre foi a luz; na estética tradicional japonesa o essencial está em captar o enigma da sombra. O belo não é uma substancia em si senão um jogo de claro-escuro produzido pela justaposição das diferentes substancias que vão formando o jogo sutil das modulações da sombra. O mesmo que uma pedra fluorescente na escuridão perde toda a sua fascinante sensação de joia preciosa se fosse exposta a plena luz, a beleza perde toda a sua existência se se suprimem os efeitos da sombra.”
O Segredo das Águas, e quase todo cinema de Kawase, trabalha a partir destas sombras, das sombras que o sol e a lua projetam sobre os corpos; transita pelas sombras que a morte cria em todo humano desde o nascimento, afinal, como lembra o pai de Kioto, com a sabedoria do bom surfista, é preciso “manter uma atitude humilde em relação à natureza. É inútil resistir”.
Cesar Zamberlan
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