Ano VII

Brasília 2014 – Balanço

terça-feira set 30, 2014

Ela Volta na Quinta

Relato pessoal do 47º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro *

Por Sérgio Alpendre

* (doravante chamado simplesmente de Brasília 2014)

Sobre a discutível metamorfose de um festival

Na divulgação dos filmes selecionados para o 47º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, era possível antever uma tiradentização circunstancial desse veterano festival. Esperava que os filmes na tela negassem essa impressão, mas isso não aconteceu. Por que eu esperava essa negação? Porque Tiradentes, apesar de ter uma proposta forte, de ter a ver mais com procuras e pesquisas de novas possibilidades para um cinema fora dos grandes esquemas do que com termômetro de qualidade do cinema brasileiro atual, é um festival que cada vez menos encontra filmes que façam valer essa proposta para além do “estudar e conhecer possíveis caminhos”.

Por isso a tiradentização de Brasília, neste momento, é ruim. Os caminhos viraram fórmulas antes mesmo de serem pavimentados. Uma maneira de filmar e pensar cinema chega à decadência sem ter atingido um verdadeiro ápice. Sei que existem filmes diferentes, mas todos respondem a (ou partem de) ideias em comum: louvação exacerbada do processo, valorização do dispositivo mais do que da dramaturgia, rompimento das fronteiras entre ficção e documentário, destaque ao afeto e à amizade que são frutos de uma colaboração coletiva, ausência de construção psicológica dos personagens, atenção ao tempo real, certa conexão com o neorrealismo e com Abbas Kiarostami, vontade de tocar em temas sociais urgentes.

Por mais que esse tipo de cinema, com suas variáveis (que não são muitas), tenha produzido alguns filmes interessantes nos últimos anos, ele já se esgotou, e felizmente mais críticos chegaram a essa mesma conclusão. Não vou brigar sozinho desta vez (brigar no bom sentido).

E também não faz sentido dizer que o novo é incompreendido, como ouço por aí de pessoas que parecem ter nascido ontem. De que novo falam? Quem acha que os filmes exibidos em Brasília representam o novo não conhece nem a superfície da história do cinema. Não é isso, de todo modo, que os legitimaria. Eles poderiam ser bons, fortes, importantes, sem ter nada de novo.

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A programação de Brasília 2014 explicitou a ressaca que vive o cinema “jovem” brasileiro (já que o “novíssimo”, compreensivelmente, tem sido negado por quase todos que o representariam, pensemos num termo mais apropriado, sempre levando em conta o que essas terminologias têm de fracassadas e exclusivas, e que alguns veteranos podem fazer esse tipo de cinema identificado aqui como jovem – exemplo: Murilo Salles, que entrou de cabeça na fórmula, quando já desgastada, em seus últimos documentários).

Alguns sinais (não necessariamente negativos) presentes em filmes cultuados a partir de Tiradentes e visíveis também nos filmes de Brasília: a preocupação social que provoca adesões automáticas (Sem Pena, Brasil S/A, Branco Sai Preto Fica); a contemplação que se revela fetichista, órfã do “tempo esculpido” à Cao Guimarães (Ventos de Agosto, momentos de Brasil S/A)[1]; o filme-processo que não se justifica e o uso enganoso da amizade e do afeto como únicas molas propulsoras da dignidade em cinema (Pingo d’Água – ao contrário da maior parte dos críticos, considero Jean-Claude Bernardet ultimamente um problema como ator); o monte de ideias e de vontade crítica (o que é positivo em Branco Sai Preto Fica, mas que se devoram após alguns minutos, transformando um filme, em momentos alternados, numa escola de samba sem samba ou numa procissão solene e esquisita, no caso de Brasil S/A); o pedaço de vida zavattiniano que mescla ficção e documentário ao mostrar gente como a gente (Ela Volta na Quinta).

Um exemplo do problema, em sua pior faceta, surgiu no terceiro dia de longas em competição: Pingo d’Água, de Taciano Valério. Não importa se o diretor paraibano que mora em Caruaru é sincero em suas intenções (e ingênuo a ponto de não perceber que colocar agradecimentos aos selecionadores é, no mínimo, estranho), ou se acredita mesmo que é possível fazer esse tipo de cinema, hoje, sem ter uma visão de mundo madura e crítica, como a que Sganzerla tinha quando fez seus filmes mais radicais (Sganzerla me parece ser a fonte de Valério, além da forte conexão com o trio Bernardet-Everaldo-Tiradentes). A fórmula sendo modificada (mas não melhorada) por uma combinação de novos ingredientes.

A questão, como sempre, não é de ordem pessoal (não gostei da programação, fazer o quê?). É de legitimação (o oba-oba de sempre precisa de legitimação crítica, mas por que a crítica teria de legitimá-lo?). Tudo hoje tem de ser legitimado por alguma instituição (temos algumas); dessas que torcem fanaticamente para termos mais filmes, muito mais do que melhores filmes  (na verdade, parece não haver consciência de que precisamos de melhores filmes, o que é mais grave). Como essa legitimação tem sido frequente e nada criteriosa, nadamos num lamaçal em que a afirmação falaciosa de que da quantidade podemos extrair a qualidade surge sempre como arma para um tipo de cooptação de críticos impressionados com a festa. Não há como o cinema vencer nesse cenário.

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É necessário mencionar a carta lida e assinada pelos principais envolvidos com os filmes em competição, comprometendo-se a dividir o prêmio entre eles. Estimula-se a comunhão no lugar da competição. Isso não tem como ser negativo. Mas há algo estranho na recepção ao ocorrido. Não creio que seja simples demagogia, como já foi apontado (não acredito que tenha sido proposital, pelo menos), mas falta algo para ser realmente histórico. Se no ano que vem, todos os selecionados fizerem o mesmo, e assim anunciarem no primeiro dia, antes da exibição de qualquer filme, algo poderá mudar na constituição do festival, espalhando-se para outros festivais, e aí, sim, o encerramento de Brasília 2014 terá sido histórico. Porque a premiação maior é ser selecionado, no caso (em que pesem as diferenças de julgamento entre mim, selecionadores e jurados, diferenças que são absolutamente naturais).

Pensei em alguns pontos, sem estar convicto de qualquer um deles. São apenas pulgas atrás da orelha, coisas que gostaria que fossem debatidas. Vamos a elas:

a) O risco de sair de mãos abanando pode fazer com que muitos prefiram uma parcela do prêmio ao invés de vê-lo inteiro nas mãos de outro. É o óbvio outro lado da moeda. É humano, afinal, e não acho justo censurá-los por esse receio. Até que ponto isso aconteceu, e em que medida não interessa muito. Como escrevi, não é algo censurável, muito menos mensurável. Mas as pessoas parecem esquecer disso, fazendo com que todos os envolvidos pareçam heróis, não apenas seres humanos, com medos e vaidades. E como o nosso cinema precisa desesperadamente de heróis, dá-se o exagero na recepção à carta (do lado de quem criticou também).

b) Houve uma boa parcela de críticas negativas aos filmes em competição, com a exceção de dois, quase unânimes: Branco Sai Preto Fica e Ela Volta na Quinta. Não acho difícil que os cineastas e produtores ali estivessem por dentro da recepção aos filmes e desconfiassem da enorme força do filme de Adirley Queirós.

c) Vamos supor que a divisão do prêmio tenha sido decidida no começo do festival. A atitude fica ainda mais bonita. Por que, então, não leram a carta antes de qualquer exibição? Eu quase rejeito essa hipótese porque essa carta me parece, em muitos aspectos e guardadas as proporções, a estratégia da seleção brasileira na preparação para a Copa do Mundo de 1994, quando, durante as eliminatórias e debaixo de fortes críticas, alguém da comissão técnica sugeriu demonstrar união com todos os jogadores entrando de mãos dadas em campo.

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Não vi os debates, mas pelos relatos que ouvi, foram surreais. A má recepção crítica aos filmes e a ausência de críticos nos debates relativos a esses filmes foram motivos de um debate mais geral na UNB, pois os realizadores realmente acham que têm a palavra certa sobre seus próprios filmes, em vez de serem apenas mais um a comentá-los.

Aqui vale resgatar o que escreveu o grande Northrop Frye a respeito em A Anatomia da Crítica (é crítica literária, e de 1957, mas se aplica perfeitamente aqui e agora, além de ser pertinentemente brilhante):

“O axioma da crítica precisa ser não que o poeta não sabe do que está falando, mas o de que não pode falar sobre o que sabe. Defender o direito de a crítica simplesmente existir, portanto, é pressupor que a crítica é uma estrutura de pensamento e conhecimento que existe por direito próprio, com certa parcela de independência da arte da qual se ocupa.

O poeta pode, é claro, ter alguma habilidade crítica própria e ser assim capaz de falar sobre sua própria obra. No entanto, o Dante que escreve um comentário sobre o primeiro canto do Paraíso é simplesmente mais um dos críticos de Dante. O que ele afirma tem um interesse peculiar, mas não uma autoridade peculiar (…).

Quando Ibsen sustenta que Imperador e Galileu é sua maior peça e que certos episódios em Peer Gynt não são alegóricos, pode-se apenas dizer que Ibsen é um crítico irrelevante de Ibsen.”

De minha parte posso dizer que não gosto de participar de debates da plateia. Não gosto de ser o cara que faz a observação longa disfarçada de pergunta, e não gosto do clima demagógico que acontece na maior parte dos debates de festivais. Porém, creio que não seja fugir do confronto não ter interesse por um debate no formato mesa-observações-questionamentos, dentro dessas condições. Acredito que o debate seja mais rico e frutífero se não se limitar a mesas pré-organizadas, e cada um questione da maneira que preferir.

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brancosai

Branco Sai Preto Fica

Para encerrar, breves comentários sobre os filmes exibidos. Dos curtas, gostei de Estátua, de Gabriela Amaral Almeida; Nua Por Dentro do Couro, de Lucas Sá; e A Chamada, de Gustavo Vinagre. Cada um com suas imperfeições, mas certamente com suas forças. Os dois primeiros flertam com o horror, e o terceiro, com o documentário. Os três se beneficiam do magnetismo pessoal de suas atrizes/atores. A menina de Estátua, por exemplo, é um desses achados que devem ser levados com cuidado. Temos uma presença muito forte ali, que não deve ser menosprezada (assim como o trabalho da diretora na direção da menina). Gilda Nomace pode estar se repetindo em papeis banhados pela estranheza, mas é inegável o seu carisma em Nua Por Dentro do Couro. E o senhor cubano de A Chamada é uma tremenda figura, digna de nossa compaixão.

Sem Pena

Sobre Sem Pena, tenho pouco a acrescentar ao texto de Heitor Augusto, aqui na Interlúdio. Quando ele discorre sobre a nobreza do tema como um fator de blindagem, em que o não gostar pode gerar patrulhamento, está certíssimo. Tenho falado da ditadura do tema em inúmeros textos, em como alguns temas provocam adesão automática (geralmente os de esquerda), e é bom saber que não estou sozinho na empreitada. Cid Nader notou que a opção de esconder o rosto dos que depõem dura apenas até os créditos finais. Realmente, isso é estranho. Revela uma estratégia legitimadora também, ao revelar que entre os depoimentos estavam os de filósofos, assistentes sociais, jornalistas e outras figuras legitimadoras (perdoem a repetição), chamadas de formadoras de opinião (expressão que detesto, aliás). Uma pena, pois o Puppo tinha mostrado paixão e inteligência em Ozualdo Candeias e o Cinema.

Brasil S/A

Uma sinfonia, como chamou Heitor Augusto, com razão. Mas uma sinfonia interrompida e inacabada sobre o progresso e o crescimento urbano desordenado, sobre a máquina que domina o homem e o homem que aceita ser dominado com facilidade (pela máquina e por várias outras coisas). Tem momentos magníficos, sobretudo quando mostra os cortadores de cana e as máquinas realizando coreografias. Os momentos da família feliz, que emulam comerciais de novos condomínios, por outro lado, são meio infantis, quebrando boa parte da força das imagens iniciais. Fica a impressão (e a vontade) de que Marcelo Pedroso ainda vá fazer um belo filme. Mas precisa se livrar da síndrome das muitas ideias que se sabotam, sem voltar para a síndrome da única ideia que se reitera e se vale das ideias de outros (caso de Pacific).

Pingo D’Água

Entendo quem encontre qualidades neste filme de Taciano Valério, mas dificilmente vou entender o que leva alguns críticos a considerá-lo maravilhoso. As primeiras imagens mostram uma pessoa dentro de uma mala. Não sabemos quem é, mas intuímos que essa imagem deve fechar o filme. Na última sequência, Jean-Claude Bernardet entra na mala e se fecha lá dentro. Vontade de enclausuramento, êxtase de desespero e afeto, o viajar porque precisa como símbolo. Tudo isso me parece tremendamente fraco. E o filme dá umas voltas tolas. As performances são dignas de fim de festa, com todo mundo bêbado, capacidade crítica abaixo de zero, aplaudindo qualquer coisa (o momento “Fala”, de A História da Eternidade, performance de Irandhir Santos para a música dos Secos e Molhados, que funciona como ponto de levantamento de plateias, sendo repetido e piorado pelo menos por três vezes neste Pingo d’Água).

Branco Sai Preto Fica

Uma ficção científica política e apocalíptica sobre Brasília e cidades satélites é o que propõe Adirley Queirós com este seu primeiro longa após o premiado A Cidade É Uma Só? Percebo uma limitação evidente em seu cinema: o domínio do ritmo ainda não foi alcançado. Por diversos momentos perdi contato com o filme. Pode ter sido falha minha, obviamente. Mas em conversas com amigos, alguns deles me confidenciaram que sentiram a mesma coisa, ainda que logo retomassem o contato. Algumas imagens e ideias são bem fortes: o amor pelo vinil, a máquina do tempo, a Vanguarda Cristã que detém o poder, a inacessibilidade para deficientes físicos, a ideia do desmanche de próteses. Mas o filme parece girar em falso. É para ser revisto, sem dúvida, para sanar a dúvida: o problema estaria comigo ou com o filme?

Ventos de Agosto

O quarto longa “solo” de Gabriel Mascaro, assim como o segundo, Avenida Brasília Formosa, arrisca-se a fazer cinema, ainda que o faça de maneira um tanto capenga, enquanto o primeiro (Um Lugar ao Sol) e o terceiro (Doméstica), caem nas facilidades das chantagens sociológicas, sem sequer tocar as bordas do cinema. Pois este Ventos de Agosto está para Avenida Brasília Formosa assim como Doméstica está para Um Lugar ao Sol. Ou seja, um é a banalização de elementos que já se encontravam no outro. Porque enquanto Um Lugar ao Sol e Avenida Brasília Formosa comportavam algumas experiências interessantes – o primeiro com a esperteza diante de uma ideia oportunista, o segundo com um senso de observação que promovia encontros esporádicos com uma interessante contemplação de vidas em sociedade – Doméstica e Ventos de Agosto são filmes destinados a agradar as plateias festivalescas, anestesiando-as com quilos de culpa burguesa (no caso do primeiro) e com imagens vazias, embalsamadas (no caso do segundo). Se prefiro o segundo tipo de filmes é porque ao menos há uma vontade de produzir belos planos, ainda que dessa vontade surjam tanto momentos bons, como o do próprio Mascaro captando vento, quanto planos horrendos como os da moça se refrescando no barco, ou a maior parte dos planos em que temos um diálogo.

Ela Volta na Quinta

E ela é a grande força do filme. Personagem verdadeiramente afetivo da mãe. O final ideal seria com a reação dela (só ouvida, pois ela e seu marido estão na cama, quarto escuro, prestes a dormir) à informação de que a parede da sala será arrumada no sábado. A parede, aí, representa uma relação que se leva com a barriga. Ela tinha acabado de voltar, numa quinta-feira, de uma viagem. Pensava que ia encontrar a relação (e a casa) no mesmo marasmo, com as mesmas coisas por fazer. A surpresa (verdadeira ou falsa, não importa) de que o marido tinha providenciado uma mudança, a satisfação que pode ser pressentida em meio à escuridão do quarto… Teria sido um final classudo. O que vem depois não é ruim. Mas o filme tem problemas de ritmo. Cansa um bocado, ainda mais numa sessão em que o ar condicionado era praticamente inexistente. É outro que carece de revisão. Mas já adianto que não gosto muito do momento YouTube, e acho bem feios os planos de cama em que a luz está acesa.


[1] Contemplação que o próprio Cao Guimarães começou a abandonar após Andarilho, seu melhor filme. A ideia de “tempo esculpido” vem de Tarkovski para atingir a nova geração de realizadores brasileiros (além de Cao, Camilo Cavalcanti, Petrus Cariry, Alexandre Veras, Affonso Uchoa em Mulher à Tarde, Helvécio Marins, entre outros).

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