Era Uma Vez em Nova York
Era Uma Vez em Nova York (The Immigrant, 2013), de James Gray
Era Uma Vez em Nova York pode parecer um título besta inicialmente, desses genéricos aplicados a qualquer filme (desde que se passe em Nova York, evidentemente). Pensando melhor, vemos logo que esse título, se não é tão bom quanto poderia ser Imigrante, ao menos é menos infiel ao original do que A Imigrante ou O Imigrante. Porque o original não especifica. Pode falar dele, Joaquin Phoenix, ou dela, Marion Cotillard. Ambos dividem o protagonismo, sendo que inicialmente é ela que ocupa o centro do filme, depois já não fica mais tão evidente, e, no final, a meu ver, o protagonismo é dele.
Nos primeiros planos, Nova York está sob uma bruma espessa, e assim parece hostil àqueles recém-chegados. A Terra Prometida ainda parece um tanto distante. Logo vemos Ewa (Cotillard) com sua irmã, Magda, que sofre de tuberculose. Na fila da imigração, ela não consegue disfarçar sua doença e vai para o hospital, onde fará tratamento antes de ser deportada. Ewa entra também na fila da deportação, onde é encontrada por Bruno (Phoenix), que, segundo informações ditas posteriormente por ele (podemos acreditar ou não nessas informações), já a aguardava para a ter sobre sua guarda. Bruno agencia uma trupe de garotas que dançam e se prostituem. Apesar de inicialmente apresentado como um homem duro e ganancioso (algo reiterado por ele mesmo), Bruno se mostra atencioso e afável, nunca um troglodita, como costumam ser apresentados personagens do tipo no cinema americano. Ao mesmo tempo, Ewa, apresentada como vítima tola e frágil, é contemplada com o final mais esperançoso entre os principais personagens do filme. Ela faz o percurso da perdição em direção à redenção, enquanto Bruno faz o percurso contrário. O espelhamento do assombroso plano final então faz todo sentido. Amar Ewa foi sua perdição. E de certo modo, conscientemente ou não, Ewa o usou. Com o sucesso da fuga dela, a dele se torna impossível.
No filme, as pessoas são más por circunstância. Todos têm maldade no coração (todos temos, devo dizer, pois desconfio dos santos). É uma determinada circunstância que faz aflorar a maldade. Bruno diz, em certo momento, que todos são maus, ao contrário do que Ewa pensa, ou do que ele pensa que ela pensa. Porque Ewa nem mesmo pensava isso, embora de acordo com os personagens do filme ela teria razões para assim pensar. Ela se aproxima de Emil (Jeremy Renner), um galanteador picareta, encrenqueiro e de modos duvidosos. Mas nada nos diz que Emil é realmente mau. Nem mesmo quando aponta uma arma para a cabeça de Bruno, numa brincadeira que lhe custa a vida. James Gray, aliás, brinca também com nossa expectativa, pois havíamos visto Emil tirando as balas da arma, mas ficamos em dúvida se ele teria colocado enquanto esperava no quarto ou não.
E de dúvida somos alimentados o filme inteiro. Algumas se resolvem, outras, não. Dúvida se a irmã está mesmo sendo bem tratada no hospital da imigração; se Bruno viu que Ewa pegou o dinheiro do chapéu; se os guardas da imigração são confiáveis ou realmente subornáveis; se a mulher polonesa que fala sobre o desprezo das autoridades americanas em relação aos que esperam a deportação assim o diz com sinceridade ou apenas como um sinal de seu desespero para sair dali, se Ewa se interessa mesmo por Emil, até mesmo se ela havia sido realmente estuprada no navio que a levara até Nova York.
Após a cena do assassinato de Emil, quando o filme vira realmente um melodrama, as dúvidas vão se desmanchando, mas os personagens continuam ambíguos. E no final dessa mesma cena, vemos uma das garotas de Bruno vigiando tudo por uma porta entreaberta. Acredito que tenha sido esse momento que motivou Luís Miguel Oliveira a ter escrito que Gray havia feito um melodrama italiano dos anos 50. A revisão de Catene (1949), de Raffaelo Matarazzo, dias antes de rever Era Uma Vez em Nova York, indicou, a mim também, essa aproximação. O filme de Matarazzo é repleto de personagens ouvindo diálogos atrás da porta, situações que se desenrolam em cima de um mal entendido, além de, acima de tudo, uma incrível precisão na mise en scène (precisão que todos os filmes de Gray trazem consigo).
Muitos reclamam dessa aproximação com o melodrama. Faz, segundo eles, com que o filme seja careta, antiquado, cafona. Outros ressaltam que o filme não tem nada de original. Por que um filme deve ser original? Por que só o original é que vale? E, principalmente: que ideia as pessoas tem de originalidade? Howard Hawks, principalmente em Eldorado (1967), mas em diversos outros filmes, repetiu-se descaradamente. Mas conseguiu ser diferente a cada vez. Penso que o mesmo acontece com Era Uma Vez em Nova York. Um filme que repete padrões, mas é diferente. Claramente diferente. Um filme único. Não se encontra algo parecido, ainda mais no cinema americano. Um filme que alterna procedimentos clássicos e modernos, visual barroco e impressionista, simpatia e antipatia por diversos personagens. Em suma: um filme construído na dúvida e na alternância.
Voltemos ao plano final. Ewa se afasta de barco com a irmã, vista através da janela de um depósito, no lado esquerdo do quadro, enquanto Bruno sai pela porta, visto por um espelho, ou alguma outra superfície reflexiva, no lado direito (espelhos e superfícies reflexivas são elementos quase sempre presentes no melodrama e no filme noir, por sinal). Graças à reflexão, ambos parecem estar indo para a mesma direção, distanciando-se da câmera rumo a um futuro indefinido. Para ela, a promessa de uma nova vida longe dali. Para ele, a incerteza de uma culpa, de um crime que cometeu por acidente, e pelo qual não foi acusado. Ela passa o filme inteiro como vítima, mas no final vemos que não era bem assim. Eis a parcela de ambiguidade que falta ao cinema atual.
Sérgio Alpendre
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