Dia 6 – O limite da escrita
Dia 6 – O limite da escrita (Ela Volta na Quinta)
por Heitor Augusto
O fato é que, apesar de Ela Vonta na Quinta ser um filme de coisas muito simples (família, amor, morte, vida, memória, relações, futuro – dos que ficam e dos que foram), há uma sensível dificuldade falar dele sem cair nem em lugares comuns, nem na tentadora orgia de adjetivos (a ferramenta mais usada por um crítico para cortar caminho ao caminhar em direção ao filme). Cléber Eduardo, nos idos de Cinética, aproximou-se dessa dificuldade ao abordar Muro, de Tião: “Muro é o fim da crítica caso a crítica não seja humilde suficiente para decretar sua derrota e seu limite. Não o limite da percepção, mas das palavras, da linguagem, dos parágrafos”.
Esse limite das palavras surge também ao falar do filme de André Novais de Oliveira, num registro diferente, porém. Ela Volta na Quinta não tem o mesmo interesse em causar um curto-circuito no entendimento do que é cinema como o faz Tião, mas as coisas que ele traz e como traz representam um desafio para reconstruir em texto a experiência estética.
Poderíamos buscar e elencar suas qualidades, algumas delas bem óbvias:
A) o afeto que liga os personagens, mesmo que todas as relações no filme (Zezé-Norberto, Norberto-amante, André-Élida, Nato-Carla) sejam marcadas por algum nível de tensão, de interesses opostos entre um e outro. Ou o afeto das memórias – banhar fotografias com o som de Cassiano em O Vale!. Mas trazer para cá a palavra “afeto” seria utilizar, equivocadamente, um termo usado para outro tipo de cinema. Abordemos essa via.
B) a captura de fragmentos de cotidiano, que nos permite entrar mais a fundo na natureza dos personagens, compartilhar de seus sentimentos. Caminhar por aí, porém, nos levaria inevitavelmente a falar de “cinema de dispositivo”, o que Ela Volta na Quinta é, mas não só. Não está necessariamente no dispositivo a força do filme. Peguemos outra direção.
C) ressaltar a montagem, o estabelecimento de um ritmo a compor um filme em tom menor, que exala tranquilidade para estabelecer e resolver as tensões. Mas aí pareceria só uma tentativa de reconhecimento técnico do filme, tal como resenhas de jornal que fazem uma lista do que funciona ou não num filme, e que relegaria a um segundo plano outra parte importante do filme, o calor.
D) a presença de um humor bastante peculiar, que surge com muita força no transporte aloprado da geladeira e especialmente naquela cena de Justin Bieber e a cabra. Mas até mesmo a comédia desse momento é apenas um intervalo no que realmente importa ali – a saber, uma triste troca de impressões dos irmãos a respeito do casamento dos pais. Destacar o humor não seria ignorar o quão sério é esse filme?
E) fazer um texto que seja apenas um apanhado de comentários sensíveis e impressionistas, escrito por alguém que se posiciona de dentro do filme para fora, aderindo integralmente a ele. Fazê-lo, porém, pode até resultar num texto com passagens bonitas, mas será de pouca contribuição para o entendimento do filme, para uma crítica de fato.
Desses caminhos possíveis (devem haver outros), nenhum me satisfaz. Cá temos um filme com o qual se tem uma experiência direta ao assisti-lo, mas sobre o qual é difícil escrever. Há um limite da escrita. Até porque de todos os longas em competição em Brasília, Ela Volta na Quinta é aquele que parece não terminar nunca, que continua passando em flashes na mente. Se em Branco Sai, Preto Fica o que permanece da sessão são os impactos, no filme de André o que se retém é aquele sabor de filme temperado em tom menor. A verdade é que para a minha memória Ela Volta na Quinta ainda não acabou, continua sendo exibido.
Das discussões relevantes que tive com amigos críticos durante o festival, um ponto que surgiu foi o uso que fazemos da palavra “honesto” para valorar um filme, um realizador. O “honesto” não se refere a um julgamento de caráter, mas em como a matéria é tratada pelo filme, se nele está proposta uma experiência íntegra com o espectador ou se o que vemos são atalhos para criar efeitos. Se no começo desse texto disse que os adjetivos estão aí para furtar um crítico a lidar com o filme, terei de usar um – o que implica reconhecer o meu limite ao falar desse filme: “honesto” no lidar com as pessoas/atores/família que compõem o filme, com a vontade de cinema, com o espectador.
Honesto também com um aspecto que me parece relevante ao filme, ainda que jamais verbalizado: negritude. Sem a romantização do Cinema Novo (os pretos do morro que sambam e são livres em seu primitivismo) ou a estigmatização do cine-favela (os pretos pobres na iminência de entrar para o crime). Também num registro distinto ao filme de Adirley (nós, pretos, vamos invadir sua praia). Se Ela Volta na Quinta é um filme em tom menor, nada mais justo que o ser preto e estar no mundo surja sem alarde, mas que esteja espalhado por todo o filme.
Num país em que raro é ver imagens de negros além do estereótipo, não deixa de ser marcante ver uma família de pretos fazendo coisas normais, do cotidiano, vivendo apenas, sem a necessidade de preencher arquétipos. Não houvesse consciência dessa força, o filme jamais teria um excerto da Afro-american Simphony de William Grant Still nos créditos finais.
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