Ano VII

Dia 2 – Por um cinema que não seja fofo (Sem Coração)

sexta-feira set 19, 2014

 

Dia 2 – Por um cinema que não seja fofo (Sem Coração)

 

por Heitor Augusto

 

Deparar-se com a evidência de um filme como Sem Coração reforça que é possível fazer um filme com e sobre jovens sem cair naquela tendência inócua tão comum a uma parte da produção em curta-metragem do cinema paulista (a saber: jovem de classe média, branco, numa bolha que vai descobrir o mundo por meio de um filme que, frente à possibilidade de um tema de conflito, alivia, faz-se “fofo”, conciliador ou o oposto, final catártico/chocante).

 

Para quem não é de São Paulo, talvez não faça muito sentido falar de um filme de realizadores pernambucanos e rodado nas Alagoas a partir do cinema que se faz pelos paulistanos. Mas para quem reflete e se depara com a produção de SP há anos acompanha, talvez desde o sucesso dos primeiros curtas de Esmir Filho (em especial Saliva), essa tendência vazia: um cinema autocentrado, de personagens que nunca cortam o cordão umbilical e ficam boiando num mar de nada, estabelecendo uma relação “sensível” com o mundo. Alguns dos recentíssimos, citados de orelha: Quito, L, Cloro, Laio ou ainda aqueles que tenta fazer a ponte entre “eu” e o “mundo”, mas que nunca consegue sair do mesmo ponto de vista (O Sol Pode Cegar).

 

Cenas de balada, banheiro, espelho, água, câmera lenta, perspectiva subjetiva assustada com o mundo, som distorcido e/ou indie rock, descobrir a diferença no outro… Especialmente em São Paulo, filmes são feitos por pessoas que vem de lugares sociais bastante similares, com experiências e perspectivas de mundo bastante próximas, visando tocar pessoas vindas dos mesmos lugares, até mesmo em filmes em que se fala do outro.

 

Afora esse caminho de pensar Sem Coração a partir de uma outros curtas, existe o filme em si. Se nem sempre a projeção permite que o filme seja visto em sua integridade, a de ontem no Cine Brasília potencializou a experiência. A evidência do rosto da menina tornou-se ainda mais forte.

 

Há nele um manejo de seneimentos opostos. A brutalidade ao lado da sensibilidade, a violência do afeto. Sem Coração desdobra e une desejos e características dos curtas anteriores de seus diretores, Nara Normande e Tião: um diálogo entre a beleza possível num cenário hostil (Dia Estrelado, de Nara) e um olhar de cinema agressivo, que na verdade está pronto para implodir o vocabulário que usamos para entende o cinema (Muro, de Tião). 

 

Pela força da dramaturgia e pelo desejo de jamais abdicar de mostrar (ao invés de demonstrar), violência e afeto não se tornam, no universo do filme, dois elementos que não se misturam. Pelo contrário: ambos estão juntos, o tempo inteiro, em cada gesto, em cada olhar daqueles garotos para aquela menina, daquela menina para o mar.

 

O impacto do filme não é apenas pelo o que acontece na piscina. Está em todos os planos do filme: no tamanho do mar, do céu, do som dos pés dos personagens contra o chão, no olhar de susto da presa contra o algoz, no olhar do caçador que sequer entende o que é caçar, do peito rasgado. Não deixa de impressionar o tamanho da brutalidade do e no filme, mas que, todavia, não leva uma tendência de psicologizar ou a uma tentadora leitura maniqueísta que privilegia apenas a questão de classe – ainda que ela esteja deveras presente, pois, lembremos, Léo é um “estrangeiro” abastado e Sem Coração é a menina local e este é evidentemente um filme de memória (ao menos é o que indica o granulado). Um filme que não passou de um sonho de Sem Coração e de Léo: coisas que marcam, das quais ficam mais as sensações do que o detalhe dos fatos.

 

No meio da tempestade de memórias que é esse filme, há três signos que lhe dão sustentação: a baleia morta, que após avistada pela menina, o primeiro gesto é checar-lhe o batimento cardíaco; a entrega do objeto misterioso passado da mão do menino para a da menina: um coração; por fim, a piscina vazia: numa leitura psicológica, a representação metonímica de todo o episódio; mas é também um espaço bastante similar àquele cantinho do matagal no qual a menina é exposta em Baxio das Bestas (mas se no filme de Cláudio Assis não há saída pois há um vício de princípio no homem, que é mal e tem prazer pela malvadeza, em Sem Coração o ponto de vista abre uma rachadura na asfixia).

 

De quem é o filme, de Léo ou de Sem Coração? Dos dois, vê-se o mundo pelos olhos dele e dela. Não se trata do inócuo “eu vou para o mundo, mas nunca deixo de achar mais importante não a dialética dessa relação, mas o olhar para o meu umbigo que enuncia que estou olhando o outro”. No panorama do curta recente, essa é uma das grandes forças de Sem Coração.

 

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