Black Men can’t shoot
Black men can't shoot: um olhar sobre o herói de Homens Brancos Não Sabem Enterrar
por Heitor Augusto [1]
O amaciamento já começa pelo título: Homens Brancos Não Sabem Enterrar, tradução que trai sensivelmente o título original White Men Can't Jump (ou seja, Homens Brancos Não Conseguem Pular). Seria apenas uma discussão infrutífera como muitas outras concentradas em gosto, preferência e chiste com títulos de filmes. Seria, não fosse tal tradução tão alinhada com a maneira que tratamos as tensões étnicas no Brasil: atenuando-as.
Malabarismo hercúleo atenuar o que é não só evidente, mas força motora desse filme: as relações raciais e os estereótipos a elas associados, carregando uma série de afirmações específicas ao universo do basquete. A começar pelo suposto jeito negro de jogar X o jeito branco. Grosso modo, o primeiro: descolado, no qual o estilo é também parte do jogo, repleto de enterradas; o segundo: voltado para jogo coletivo, em equipe, menos atlético, chutadores mais distantes do garrafão. Como todo estereótipo, há um pouco de verdade, outro de mentira e uma certa preguiça, pois é mais fácil agarrar-se ao chavão do que fazer corpo a corpo com o real.
O basquete americano é uma das arenas com mais nuances para discutirmos interação, performance e papeis entre pretos e brancos no esporte. Comparando: o futebol, especialmente brasileiro: democracia racial, a ginga do samba já canonizada e protegida (ainda que em algum lugar haja o trauma do goleiro preto pós-Barbosa); Tênis e golfe: maioria branca, narrativa explicada muito pelo processo econômico excludente (os famosos “esportes para ricos”); Beisebol: afluência de negros e, principalmente, hispânicos; Futebol americano: a cicatriz parecida com a do caso Barbosa no futebol, ou seja, poucos negros numa posição considerada de absoluta confiança (quarterback e goleiro).
Qual é a grande narrativa que explica a NBA para além de táticas, invenção da linha dos três pontos, dois ou um pivô, ala de força que chuta de três, um ou dois armadores? O quão negra a NBA está. Não fosse esse talvez o grande eixo narrativo para quem procura o que está além da quadra, um filme como White Men Can't Jump não teria lastro para sua existência, canal para diálogo e comunicação de suas afirmações e piadas.
Sobre “o quão negra a NBA está” como narrativa que explica o basquete, fundamentais são: 1) leitura do capítulo sobre Allen Iverson (que, grosso modo, foi “acusado” de “thug”, o que nós brasileiros costumeiramente chamamos, num tom pejorativo, de “mano” e/ou “maloqueiro”) no livro The Undisputed Guide to Pro Basketball History, assinado pelo FreeDarko, cujo resumo foi feito pelo Bola Presa; 2) leitura de Black Planet: Facing Race During an NBA Season, de David Shields; 3) leitura de todos os capítulos relacionados a tensão racial na autobiografia de Charles Barkley, I may be wrong but I doubt it; 4) assistir ao documentário Magic and Bird: a courtship of rivals (link no YouTube).
Quando, em 1992, o filme é lançado, já existe uma gama de sentidos consolidada nas duas décadas anteriores ao filme a respeito dos estereótipos e arquétipos que circundam o que seria o tal jeito preto X jeito branco de jogar. Lembremos que uma comédia de estereótipos só funciona se houver a ciência do espectador para o conteúdo que forma justamente o estereótipo (explicar a piada não tem graça).
White Men Can't Jump vem no lastro dessa tensão entre dois jeitos de jogar, Magic e Bird, rivalidade que dominou os anos 80. Não precisa ser nada gênio para perceber o óbvio: Wesley Snipes incorpora o jeito descolado, estilo-é-tão-importante-quanto-bola-na-cesta-show-time de Magic; Woddy Harrelson a pegada jump-shooter-mortal-com-cara-de-fazendeiro-que-te-destroi-num-piscar-de-olhos de Bird [2].
Conformação de valores
Não esqueçamos, porém, que cinema americano é sempre cinema americano, ainda mais num contexto pós-Star Wars, em que a indústria retomou as rédeas e redimensionou (para menos) o tamanho da janela pela qual passariam filmes desafiantes, de fato. O que quero dizer com isso? Que se por um lado White Men Can't Jump mexe em material explosivo, por outro alinha seu discurso a valores deveras conservadores.
Sidney (Snipes) e Billy (Harrelson) são pessoas de bem, monogâmicos e que, apesar dos tapas na cara que a sociedade constantemente lhes dá, nunca deixam de seguir a lei. No máximo, externam uma indignação que brada aos ventos, estéril (no caso de Sidney, a solução é “mudar de vizinhança”). Meio século se passou desde Advinhe quem vem para jantar?, mas a lição não muda: para o cinema americano de indústria, mexer num tema explosivo implica reforçar a ordem em muitos outros.
O que não muda também é que, à exceção Spike Lee, os filmes continuam sendo feitos tendo em mente um público branco (sim, isso inclui 12 Anos de Escravidão e, numa outra escala, também Django Livre, que apesar de ter um negro como herói, é o branco que lhe dá o ingresso para o palco do heroísmo com roupas, alimentação, conhecimento ). É essa chave que, por trás das piadas em cima dos estereótipos, o flerte com o gênero comédia de amigos, determina a essência e o desfecho de White Men Can't Jump: um filme feito para o público branco se sentir bem.
Vejamos: quem é Sidney (Snipes) no começo do filme? Tem charme, malícia, inteligência e um jogo completo (controle de bola, infiltração, capacidade atlética, arremesso de perímetro). E Billy (Harrelson)? Não tem sua liberdade (está em fuga de bandidos aos quais deve dinheiro), nem carisma ou charme, muito menos inteligência (o conhecimento enciclopédico é exclusivo de sua namorada) ou juízo (só toma decisões equivocadas, especialmente financeiras). Nas quadras, lhe falta a enterrada.
Numa escala de 0 a 10 de completude, Sidney seria de 7; Billy, de 1. Mas como ambos terminam o filme? Sidney: do mesmo jeito que começou, só que com um pouco mais de dinheiro e negócio próprio (escala 8); Billy: completamente diferente, pois quitou a dívida, adquiriu jogo de cintura, aprendeu com as lições da vida, até conseguiu um emprego e só não está melhor porque perdeu a namorada, algo que é remediado porque no fim Billy e Sidney tem um ao outro – sim, bromance velado; sua escala é também de 8.
O arco percorrido pelo personagem de Snipes é minúsculo, O filme, de fato, pertence a Billy, incluindo a redenção de finalmente ter aquilo que lhe diminuía em relação a seus pares, a enterrada (ainda que ele a execute uma única vez e numa situação de vida ou morte). Bottom line: “nós, os brancos órfãos do monopólio sobre o jogo desde que Bill Russell, Wilt Chamberlain e Doctor J tomaram de assalto a NBA, vamos à forra, ao menos uma vez e nem que seja na ficção”. Ou seja, um filme para o branco se sentir bem.
Nada de novo no fronte, já que essa tendência do personagem negro que ajuda o branco a subir a escada para se tornar um sujeito ainda melhor é histórica no cinema americano, transcendendo até o próprio cinema (a ver: o “magical negro”). Por isso mesmo, o aparecimento e estrelado de Sidney Poitier é um tema muito complexo: por um lado, é o primeiro negro americano a dominar a indústria de cinema, a ser superestrela, o que não é pouco: qual o tamano do impacto em poder crescer olhando um semelhante na posição de ídolo?; por outro, não raro as ações de seus personagens são sempre tomadas ou para atender aos interesses ou para resolver o problema dos brancos – nuance apontada em 1967 no artigo Why Does White America Love Sidney Poitier So?
Afora os méritos cinematográficos, essa necessidade de atender ao interesse alheio é o que me chama muita atenção no que representa historicamente o cinema Blaxploitation: uma fissura aguda nesse paradigma. Sejam os filmes canônicos (Shaft, Super Fly), sejam os menos conhecidos (Space is the Place, Ganja and Hess), não se pensa um personagem negro no mundo dos brancos. A lógica é invertida completamente.
Voltando a White Men Can't Jump: como Billy consegue a perseguida enterrada? Num passe de ponte aérea. Lançado por quem? Sidney. Quer dizer, é o mito do “magical negro” brilhantemente ilustrado numa simples jogada de basquete.
Sujeito cordial
Ainda assim, é preciso dizer que um filme com essa trama, que neste texto é acusado de não se desvencilhar de uma sombra conservadora, jamais seria feito no Brasil. Não há fôlego suficiente aqui para destrinchar os porquês. Tento, todavia, sugerir alguns:
1) o velho pacto cordial, aquele ilustrado por “Escuta aqui, o primo do cunhado do meu genro é mestiço/ racismo não existe, comigo não tem disso” e “Vem ver, aqui não tem preconceito, o negro tem a alma branca, há uma igualdade sem par”;
2) uma certa obrigação invisível em falar de temas nobres apenas por formas narrativas já legitimadas – por exemplo, Quase Dois Irmãos (talvez por isso mesmo jamais tenha havido sequer rastro de reverberação, no Brasil, do cinema Blaxploitation, ao contrário do que aconteceu na música com bailes black, Nelson Triunfo, Gerson King Combo, Toni Tornado etc). O que chamo de “obrigação invisível” não é exclusiva do cinema brasileiro (a ver: A Cor Púrpura), mas aqui ainda temos bastante pudor com o pop, assunto para o qual Alex Antunes me chamou a atenção numa conversa. Quiçá, na cinematografia daqui, só se quebrou esse ranço na produção do Cinema Marginal, especialmente os primeiros filmes de Sganzerla e de André Luís de Oliveira;
3) porque nas escolas de cinema os alunos, além de virem de um lugar social bastante semelhante, encontram na grade curricular uma repetição de conteúdos e de “o que se deve legitimar” (enquanto me preparava para ministrar um curso sobre cinema africano, perguntei para alguns amigos atentos que estudaram cinema o que tinham visto dessa produção na faculdade. Resposta: “quase nada, no máximo um Jean Rouch (!)”. É quase criminoso que as escolas de cinema achem normal ignorar um filme como Touki Bouki). É preciso que venha alguém de fora do circuito (econômico, cultural, geográfico) para se trocar o ponto de vista (por exemplo: Adirley Queirós). Por isso mesmo, quando a tensão racial dá as caras no cinema brasileiro ela vem quase sempre sob forma de culpa burguesa (eu, realizador branco e de classe média, refletindo sobre o desconforto desse meu lugar), com vagas exceções (o irônico trecho do quarto da empregada em Recife Frio).
4) do jeito que se financia cinema no Brasil (renúncia fiscal, decisões tomadas por marqueteiros de empresas que escolhem se vão associar a marca de suas empresas a esse ou àquele projeto), incentiva-se, indiretamente, que se evite o que pertença ao campo da discórdia.
5) o óbvio ululante, continuação do terceiro tópico, mas que se faz necessário lembrar: o número ridiculamente pequeno de cineastas negros. No passado tínhamos Zózimo Bulbul, aí ganhamos Joel Zito, depois veio Jeferson De e agora André Novais, Gabriel Martins, Wagner Novais e Renata Martins.
Esqueci alguém?
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[1] Agradeço à amizade de Guga, Julio, Meka e Pedro (que também foi interlocutor para este texto), reais responsáveis por abrirem a porta da alegria para o basquete, e Rafael Terpins, que me indicou, meses atrás, a valiosa leitura de Black Planet.
[2] Esse rascunho de análise a respeito de como a tensão étnica está ilustrada e contida no basquete merece um artigo muito maior e provavelmente eu não seja o cara certo a fazê-lo, já que não passo de um apaixonado pelo jogo, mas não um especialista. Também não penso que caiba no escopo da Interlúdio, que é, no fim das contas, sobre cinema, não basquete (caberia, sim, num lugar como o Bola Presa, o melhor lugar, em língua portuguesa, sobre as coisas do esporte da bola laranja, ou no Homens Brancos Não Sabem Blogar, apesar de ser raro textos longos por lá, à exceção do Diário do Draft de Leandrinho).
Há muito mais para se falar do assunto para não soar leviano, especialmente uma perspectiva histórica que se dedique a apontar como os anos 70 se encaixam na narrativa da NBA como um todo, o que inclui os jogadores vindos do playground,a fusão com a ABA, a queda do número de espectadores, a “impressão” de que o jogo havia se tornado “violento” e de como toda essa tensão (que é racial, ainda que se utilizem inúmeros eufemismos para apontá-la) modela a rivalidade Magic e Bird. Mas acho melhor eu parar por aqui para não ir além das minhas limitadas possibilidades de análise.
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