Ano VII

The Rover – A Caçada

quinta-feira ago 7, 2014

The Rover – A Caçada (The Rover, 2014), de David Michôd

Chama a atenção as mosquinhas que tentam invadir as narinas de Guy Pierce, no primeiro plano do filme de David Michôd. Moscas mórbidas, errantes, minúsculas. Mais do que isso: índices da morte. E elas estão lá, presentes em quase todos os planos, para nos fazer sentir o cheiro de morte que emana das imagens projetadas na tela. As moscas denunciam: eis aqui um universo repleto de cadáveres ambulantes, cadáveres morais, de corpos em decomposição, de tempos mortos.

A paisagem do deserto australiano, cuja cor da areia confunde-se com a tonalidade da pele do ator, registrada em plano fixo, com o scope tentando dar conta de todo o horizonte, somada à presença da mosca, pode até fazer lembrar de Era Uma Vez No Oeste. Assim como na obra de Sergio Leone, The Rover – A Caçada, também se passa em um “depois” e tudo o que preenche a cenografia no plano tem caráter de lembrança, de relíquia, de souvenir. Só que enquanto um exibe lembranças sentimentais de anos atrás (Era Uma Vez No Oeste é a reconstrução de um universo 10 anos anterior à feitura do longa-metragem), o outro denuncia o resto, o ferro-velho, o pouco que sobrou desde que houve o colapso há 10 anos, única informação dada ao expectador para explicar o deplorável estado dos seres e objetos vistos ao longo da projeção.   É a mosquinha, no entanto, quem marca a diferença brutal entre as duas visões de mundo. Enquanto no filme italiano o inseto é brincalhão e peralta, aqui é abandono, é fim, é “largado às moscas” (ainda que haja uma interessante semelhança entre a moral do personagem de Guy Pierce e a de Harmônica e Chayenne, quando se trata da morte e da ligação com a terra e com o deserto em si).

 Ainda com base no primeiro plano de The Rover – A Caçada, somos logo introduzidos à relação estreita que o longa-metragem irá estabelecer entre o olhar que será empregado para apreender aquele mundo em falência e o desenrolar da narrativa. Não há, por exemplo, como esperar qualquer possibilidade de um mínimo desenvolvimento do arco narrativo do herói, quando a imagem que se apresenta diante de nós é uma planície infinita. O deserto moral sobre qual vivem os personagens é um plano fixo, por onde alguém entra e sai. A definição de tal conceito é dada por uma das personagens, que diz algo como “eles entraram pela esquerda e saíram pela direita”, quando questionada sobre se viu um carro passar pela casa dela. Toda a jornada viajada pelo protagonista é apenas essa passagem de um lado para outro. O percorrer pelo espaço é atravessar o plano e seguir adiante, sem aprendizado, sem que a movimentação deixe de ser física e passe a ser moral. Neste mundo em colapso, não há aprendizado possível,  não há sabedoria a ser alcançada ao fim da viagem (em dado momento, o irmão do personagem de Robert Pattinson pergunta a Guy Pierce “O que você fez com ele?! O que você fez com ele?!” a resposta é um simples “nada”).

Estamos, evidentemente, no universo de convenções que se costuma atribuir ao cinema moderno e ao contemporâneo.  Embora certas escolhas pareçam relativamente desgastadas, como o infame gosto pelo choque cultural – personagens chineses vagando pelo deserto australiano e um trem com ideogramas chineses nos vagões rasgando o horizonte – uma vez que a busca por tal choque parece prerrogativa de todo filme “world cinema”, retirando, assim, qualquer possibilidade de choque e se transformando em mero discurso desnecessário sobre globalização, Michôd é hábil o suficiente para não fazer do ator um mero zíper no invólucro do “contemporâneo”. Em meio a todo o conceito de vazio, de esvaziamento dramatúrgico, de rarefação da narrativa, há espaço para a presença do ator, para a presença do sentimento. Tudo é superfície, mas, existe emoção por baixo da areia sórdida da desertificação das relações entre as pessoas, como fica claro na penúltima sequência, quando a câmera, em close, se retém em Pierce por longo tempo, até que vaze uma lágrima. Quando todos os sistemas que regem o ser humano entraram em colapso, resta, apenas, o próprio homem. A lágrima.  Eis um oásis no deserto.

Wellington Sari

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