Balanço de Paulínia 2014
Balanço do 6º Paulínia Film Festival
Por Sérgio Alpendre
Mais um balanço de festivais. Mais possibilidades de ser incompreendido ou até boicotado por não gostar da maior parte dos filmes. Faz parte do jogo, mas não deveria fazer. Se todos se acostumassem a conviver com divergências, a crítica seria mais compreendida mesmo em seu estágio mais embrionário, o de cobertura de festivais. Mesmo quando assumidamente incompleta (porque assim são todas as coberturas de festivais).
É natural que produtores e diretores façam a festa. Trabalhar com cinema não é fácil, e a alegria de ver o filme pronto compensa as atribulações inerentes ao esforço artístico num país dominado pela burocracia. Mas os críticos não devem entrar nessa onda. Não interessa a eles os percalços de produção. A eles só interessa a arte, e como o filme pode engrandecê-la ou manchá-la. Os críticos devem pressionar os cineastas para que os filmes sejam melhores. Devem exercer a crítica como amor ao cinema, e amar o cinema não é amar qualquer filme, ou filme qualquer, mas defender o que o enobrece e atacar o que lhe é nocivo, evitando sempre a ofensa pessoal.
Abro desta forma para dizer que Paulínia, de acordo com os nomes de diretores anunciados, foi uma ligeira decepção, e ao mesmo tempo uma reservada surpresa. Decepção, em termos, por Juliana Rojas, que com Sinfonia da Necrópole (leia texto aqui) fez um longa interessante, mas abaixo do que esperava quem viu o curta O Duplo e o longa Trabalhar Cansa, seus filmes anteriores. Esperava-se um crescimento de uma das diretoras mais promissoras, que depois de curtas irregulares de início da carreira nos brindou com dois belos trabalhos. Decepção maior com Lírio Ferreira, dos bons Cartola e Árido Movie, que fez um filme frágil. O celebrado Camilo Cavalcanti decepcionou porque seu próprio filme começa prometendo algo nobre e termina se afundando na mania de provocar e em alguns exageros. E Casa Grande, que se anuncia da mesma forma, derrapa nas falas programáticas de uma discussão mas complexa, e no discurso maniqueísta.
Por outro lado, Domingos de Oliveira, que vinha numa toada preguiçosa, desencanta com um belo filme bergmaniano sobre sua infância. E Davi Pretto revela-se num caminho interessante com suas influências de Pedro Costa e Jacques Nolot em Castanha, filme não bem-sucedido de todo, mas com força em sua proposta quase minimalista e na maneira como ele consegue diferir de seus pares.
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Na estrutura, Paulínia 2014 foi uma grande confusão. Desde a indefinição das vans até o atraso intolerável das sessões (a última começava, no mínimo, uma hora depois do programado). Esse atraso cansa mais do que ver quatro ou cinco filmes na Mostra SP tendo que se deslocar entre um cinema e outro.
Voltando à programação, o ponto essencial: pelos nove longas brasileiros vistos, é possível dizer que a seleção de Paulínia foi melhor que a de Tiradentes. Não significa grande coisa porque a safra deste ano em Tiradentes foi a mais fraca desde que comecei a acompanhar o festival, em 2007. Mas é alguma coisa.
Breves impressões sobre os longas brasileiros vistos em Paulínia
Castanha
É um daqueles filmes com personagens reais que dinamitam a separação entre ficção e documentário e tem fotografia devedora dos filmes do Pedro Costa, além de duas pessoas carismáticas: o ator e transformista João Carlos Castanha, com sua voz marcante, e sua mãe, Celina. Há referências a Jacques Nolot e ao Morte em Veneza de Visconti (em alusão direta), pela angústia que domina o protagonista e pelo mergulho em seu drama. O diretor Davi Pretto felizmente está mais preocupado em mostrar a rotina dessas pessoas, os pedaços de vida que elas têm a oferecer, do que imagens impactantes ou dignas de comiseração (ao contrário do que o plano inicial, herdeiro de Pixote, insinua).
Em alguns trechos, o filme fica muito solto, com a câmera movendo-se sem muito rigor e os cortes acontecendo aleatoriamente, como parte de sua proposta de fatiar o cotidiano e inserir partes ficcionais nas situações que João Carlos representa a partir de sua rotina real. Mas isso pode ser traduzido como preguiça ou cautela excessiva, pois há possibilidades maiores no drama do ator. Há momentos de gravidade em que Davi Pretto se sai muito bem. Já nos mais cotidianos, encontramos, por vezes, essa soltura, que diminui as possibilidades dramáticas.
Os momentos mais tristes, exasperantes, escuros, aqueles em que o diretor vai fundo na melancolia, são de longe os mais fortes. Em compensação, os piores são os que mostram tela de computador (é muito difícil uma tela de computador cair bem numa tela de cinema). Então, ficção e documentário coexistem no filme, mas nem sempre em harmonia. É um obstáculo inerente à proposta, e o diretor consegue contorná-lo apenas parcialmente.
Casa Grande
Em tempos de maniqueísmo político flagrante, em que críticas a Dilma é sinal de filiação ao tucanato e criticar o Aécio é ser petralha, já era de se esperar que o cinema passasse a sofrer do mesmo mal.
Se 16060, de Vinícius Mainardi, era a versão Reinaldo Azevedo da luta de classes no cinema brasileiro, este Casa Grande, de Fellipe Barbosa, já a partir do nome denunciativo, é a versão Leonardo Sakamoto.
Estamos no terreno da pregação para convertidos, onde a classe média com crise de consciência passa suas horas livres defenestrando a própria classe nas redes sociais, enquanto o problema todo, muito mais complexo, vai crescendo e nos absorvendo. A fraqueza da estratégia de Sakamotos e afins fortalece a direita (que também é limitada na postura caricatural, mas nem tanto). A automatização de um discurso que não dá direito a nuances e questionamentos afunda as possibilidades políticas de um país já engessado (pela herança militar e pela força das grandes corporações – e me perdoem por ter sido contagiado pelo discurso automático).
Um exemplo óbvio, no filme: a discussão sobre o sistema de cotas. Cada lado fala exatamente um amontoado de clichês repetidos ao longo dos anos. Obviamente é proposital, e obviamente é a menina, namoradinha do playboy, que está coberta de razão. Mas como disse Marcelo Miranda em conversa recente, é a típica fala de roteiro. O filme abandona o linguajar dos jovens para fazer pregação, e das mais automáticas. Estamos também no terreno da ironia, tão em voga desde que Antonio Prata e Gregório Duvivier começaram textos semelhantes, em espírito e pobreza, e desde que o Diário do Centro do Mundo, veículo digno de um campus estudantil com hippies ricos, começou lamentavelmente a ser levado a sério.
É com essa pregação para convertidos que a esquerda se enfraquece, abrindo espaço para o fascismo e as máfias corporativas, e para políticos que se dizem de esquerda mas beijam a mão dos caciques da direita. São estes últimos, afinal, que sempre mandaram e continuarão mandando, mude o que mudar. Casa Grande reverbera esse problema, ainda que as cenas de família no início levem a algo mais sutil e interessante.
No plano estético, uma vez que o filme ambiciona algo maior nesse sentido, há, certamente, alguns acertos. Mas há também sérios tropeços. De posições de câmera que não valorizam o drama encenado, como na cena do trote-sequestro: que diabos a câmera faz ali, enquadrando apenas a menina, enquanto o drama dos pais era mais forte? Foi opção do diretor? Possivelmente. Assim como foram deliberados os cortes que impõem elipses estranhas, que funcionam como cautelosos recuos diante de possibilidades melodramáticas.
O temor, afinal, era injustificado, pois temos no filme ótimos atores, capazes de dar mais densidade ao drama de seus personagens, desde que suas falas não reproduzissem os discursos ensaiados de sempre.
Sangue Azul
Ôxe-meu foi como batizaram a parceria entre Renato Ciasca, Beto Brant e Lírio Ferreira neste irregular Sangue Azul. Trocando em miúdos: não estamos livres nem do desbunde de butique made in Pernambuco, nem da pretensa seriedade do cinema paulista. Dessa combustão, sai muito pouco. Do elenco notável, temos alguma afetação – Matheus Nachtergaele falando francês, Pereio sendo o doidão chato de sempre – e algum talento: Caroline Abras mais uma vez vestindo a pele da personagem, Milhem Cortaz se reencontrando num registro diferente, Ruy Guerra como um velho contador de histórias. Há também a atuação burocrática de Daniel Oliveira. E o maneirismo fim de feira da direção de Lírio Ferreira com o diretor de fotografia Mauro Pinheiro Jr.
Na trama, flertes com Bergman e com o melodrama italiano. Um circo chega a Fernando de Noronha, onde Zola, o filho do dono, reencontra familiares que há tempos não via. Mas a exemplo de Casa Grande, melodrama deve ser evitado nestes tempos de maniqueísmo político, vide a longa cena da conversa de Zola com sua mãe. O choro de Zola após a conversa não é melodramático, é, sim, tributário do desbunde pernambucano. Um choro agudo, desesperado, filmado como um soluço discreto. Assim, evita-se o melodrama pela chave do exagero performático do ator filtrado por uma câmera discreta, que permanece do lado da mãe, essa, sim, melodramática. A recusa, assim, é parcial, mas indica o receio. Essa é a cena chave do filme. Ou uma delas. Há uma outra, envolvendo a coragem para um mergulho, cuja simbologia é capenga. Como de hábito no cinema contemporâneo brasileiro, o desfecho de todos os personagens reflete o receio de encarar o drama de frente.
A História da Eternidade
Pode soar provocativo, mas não é. Essa história de cinema pernambucano ser o melhor do Brasil é uma tremenda balela. Há, certamente, filmes bons, principalmente entre os curtas (Praça Walt Disney, Faço de Mim o Que Quero, os curtas do Kleber Mendonça Filho). Mas não há, desde a retomada, filmes tão fortes como os baianos Depois da Chuva e O Homem Que Não Dormia. Então devemos deslocar um pouco o eixo. No lugar da Recife verticalizada e do sertão pernambucano, devemos atentar para o folclore baiano e a juventude de Salvador. Para Cláudio Marques e Marília Hughes e para o veterano Edgard Navarro. Para representações que não soam artificiais ou conscientes em excesso de uma suposta genialidade.
Em A História da Eternidade, de Camilo Cavalcanti, alguns cacoetes que formam o desbunde de butique mais representado, em sua pior faceta, pelos filmes de Cláudio Assis, aparecem de forma crescentemente desanimadora. Se o filme começa bem, com planos que revelam uma preocupação estética forte e uma história de fundo dramático familiar, vai se afundando cada vez mais a partir da ridícula cena da performance de Irandhir Santos para "Fala", canção dos Secos e Molhados. Ridícula porque a câmera quer ser mais performática que o artista, e tenta sem sucesso carregar consigo algo que a performance do artista também é incapaz de dar: graça.
Daí em diante o filme entra num precipício de reações que parecem querer arrancar à fórceps uma qualificação de audacioso, com os personagens servindo apenas ao cálculo do agrado tão típico dos festivais.
Aprendi a Jogar com Você
Murilo Salles dirigiu dois documentários recentes. Passarinho Lá de Nova York passou em Tiradentes, e me pareceu o típico produto daquele festival. Quem acompanha meus textos sabe que isso está longe de ser um elogio. Aprendi a Jogar com Você é menos pior, mas ainda tem o jeitão típico dos documentários que passam na cidade mineira: edição fragmentada, que corta ações em nome de uma falsa liberdade narrativa; encenação de momentos da vida de pessoas, com elas próprias na frente da câmera, fingindo naturalidade enquanto representam seu cotidiano (Nanook representou, mas o filme de Salles está a anos-luz de distância da inteligência vista em Flaherty); aparência de cinema verdade, ressaltada pelo diretor na apresentação do filme; fascínio por personagens populares e por uma certa malandragem brasileira; direção desleixada, porque demonstrar rigor em documentário pode soar esteticismo vazio; preocupação nula com a composição dos quadros; crianças dançando na frente de uma TV. Já deu, né? Saudades do Murilo Salles de Nunca Fomos Tão Felizes e Faca de Dois Gumes.
Neblina
Neblina tem a mania desagradável de encher o relato de informações que nem sempre estão de acordo com o tema apresentado. Eu até gosto dessa pretensão de fazer um grande panorama das injustiças sociais, do desprezo pelas ferrovias, da dominação do dinheiro e dos interesses de grandes corporações, e inserir o descaso com Paranapiacaba no meio de tudo isso. Mas o longa fica cansativo, com formato de tese acadêmica, algo distante do que um trabalho naquela localidade poderia resultar em termos mais cinematográficos. O melhor do filme é quando ele lembra Dormente, bom curta de Joel Pizzini. Mas se deixasse só isso, seria um curta, e derivativo ainda por cima.
Boa Sorte
Boa Sorte, de Carolina Jabor, é o tipo de filme que precisaria de um pedido de desculpas no lugar de uma apresentação. Deborah Secco muda o registro, mas continua sendo uma atriz de limitações bem evidentes. O moço que faz seu par romântico no filme, João Pedro Zappa, tem uma interpretação desastrosa, e a direção vai no mesmo caminho. O problema também está na origem: o conto de Jorge Furtado, Frontal com Fanta, transformado por ele e pelo filho Pedro em um roteiro de falas e situações ridículas. Ou pioraram demais os diálogos, ou o conto já era horrível.
Infância
Não vi Primeiro Dia de Um Ano Qualquer, mas há muito tempo Domingos de Oliveira vinha batendo na trave, na melhor das hipóteses. Com Infância, voltando aos seus oito anos e às crônicas familiares bergmanianas que ele domina, faz seu melhor filme em pelo menos dez anos.
É na verdade um presente para Fernanda Montenegro, que entendeu a generosidade e interpreta com garra e o talento de sempre sua personagem, Dona Mocinha, matriarca de uma família toda descompensada.
O texto sempre foi um ponto forte em seus filmes, mas raramente alcança o nível demonstrado aqui, em que cada fala é valorizada por excelentes atores, com entregas fascinantes de se ver.
Muita gente entende o crítico como um ser ranzinza, que faz um esforço danado para pegar as piores coisas do filme. Mas é o contrário. Queremos bons filmes, e existe uma tensão permanente durante qualquer exibição, pois ficamos na expectativa de que os erros que quase todos os filmes têm sejam insignificantes no todo, ou arranhem apenas superficialmente sua estrutura.
Infância, nesse sentido, deixou-me bastante tenso (A História da Eternidade também, na primeira hora, pois eu ainda esperava que o filme pudesse retomar o prumo demonstrado nos primeiros planos).
Um filme vivo, no qual o desleixo da mise en scène típico dos filmes de Domingos é atenuado e muitas vezes anulado por um cuidado maior com o que a câmera pode captar dentro de um espaço. Os atores, certamente, têm grande participação nessa anulação do desleixo, pois eles impõem, pelo tempo de suas falas e de seus movimentos, uma mise en scène mais caprichada, o que faz que este seja um dos filmes do diretor em que a encenação mais se aproxima de um ideal compatível com seu estilo teatral. Há até o plano à Manoel de Oliveira, quando ele flagra uma indecisão pelos pés dos personagens.
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