Ano VII

Bem-Vindo a Nova York

segunda-feira jul 21, 2014

 

Bem-Vindo a Nova York (Welcome to New York, 2014), de Abel Ferrara

 

À primeira vista, e para além das óbvias implicações marqueteiras, poderia soar pouco significativo o fato de Bem-Vindo a Nova York ser o primeiro filme dirigido por Abel Ferrara, ao longo de mais de 40 anos, a adaptar uma história real de grande apelo midiático. Se invertêssemos o ponto de vista, na verdade, seria até possível dizer que o rumoroso escândalo sexual envolvendo Dominique Strauss-Kahn (ex-todo-poderoso do Fundo Monetário Internacional e ex-virtual candidato à presidência da França) é que se inspirou nos universos de sordidez e obsessão de Ferrara. Pois eis aqui um material como que previamente moldado ao cinema deste norte-americano do Bronx em cada detalhe dos acontecimentos amplamente noticiados em 2011. Se não tivesse acontecido de fato, o caso Strauss-Kahn certamente poderia ter sido inventado por Ferrara.

 

Longe de explorar aqui a origem noticiosa de Bem-Vindo a Nova York ou mesmo de justificar o filme através das manchetes de jornal, o que mais nos interessa à análise de um projeto como este é refletir de que forma Abel Ferrara se apropria de uma realidade estruturada na mídia e nos tribunais e a transfigura para um trabalho artístico carregado de estranheza poética que praticamente o faz autônomo de suas fontes de origem. Os letreiros informativos no prólogo, revelando a origem do roteiro, servem muito mais de proteção legal (afinal, sempre há riscos de processo judicial e exigências de retratação – como, aliás, vieram após exibição do filme em Cannes) do que de contextualização e carta de intenções. Dali em diante, a Ferrara vai interessar filmar seu personagem (Devereaux, interpretado por Gerard Depardieu) e tudo e todos do seu entorno que se relacionem com o centro do que é tratado pelo filme. Qualquer excesso, gordura ou intervenções externas ficam de fora. Daí Bem-Vindo a Nova York não ser um filme sobre o caso Strauss-Kahn, mas a partir dele; espécie de “doppelgänger” retorcido e espelhado de uma realidade em fragmentos, que, depois de lhe servir de alimento, é expelida para dar espaço à arte depurada advinda da matéria-prima. 

 

Num livro de 2006, a professora, crítica e curadora francesa Nicole Brenez desenvolveu a ideia de que vários trabalhos de Abel Ferrara são compostos a partir da noção de anamorfose: “Uma imagem-chave é traduzida e metamorfoseada ao longo de um filme, assim como uma imagem anamórfica só pode ser vista corretamente sob certas condições, como através de uma lente ou um espelho que a 'desachate'”. Considerando que o grande motor criador de Ferrara é sempre encontrar maneiras de filmar o mal e suas manifestações no mundo, Brenez aponta em títulos como Sedução e Vingança (1981), Vício Frenético (1992), The Addiction (1994) e The Blackout (1997) a presença de dobras e plissados no tecido estético dos filmes, os quais “são organizados sobre uma única grande dobra (…) ou a dobra maior é progressivamente traduzida em uma série de pequenas dobras (como uma saia plissada) sobre a estrutura inteira”. Por esse raciocínio, o diretor encontra, nesse mecanismo instintivo de narratividade, formas visuais e sonoras de registrar (e, em alguns casos, eliminar) a presença do mal. 

 

Se pensarmos a proposição de Brenez (muito melhor desenvolvida ao longo do livro) no caso de Bem-Vindo a Nova York, temos as tais dobras durante toda sua duração. Na verdade, já há indícios na materialização do filme como um “duplo” do próprio cinema de Abel Ferrara. Seu trabalho anterior de ficção, 4:44 – Último Dia na Terra (2011), elevara ao máximo a imaginação ao acompanhar as horas finais de dois personagens diante do fim do mundo. Do onirismo e fluidez de imagens entre fusões, das reflexões metafísicas e existenciais, da exacerbação da tecnologia e da tentativa cósmica do casal de compreender a si mesmo diante do apocalipse, cortamos brutalmente à rispidez do relato, à longa duração dos planos, à secura da montagem, à opacidade do protagonista e ao background “realista” de Bem-Vindo a Nova York. Continuamos no universo de Ferrara, nunca deixamos a personalidade ímpar de seus filmes, porém vemos tudo agora através de um espelho distorcido. Este espelho nos deixa enxergar outro tipo de natureza da imagem, outro tipo de mal, sem por isso deixar de ser o mesmo tipo de imagem e o mesmo tipo de mal. Bem-Vindo a Nova York não é essencialmente distinto de 4:44 – Último Dia na Terra, nem de Vício Frenético, nem de The Addiction, para ficar apenas em alguns: ele é, de fato, a “dobra principal” desses filmes, cuja origem guarda débito com o noticiário jornalístico, mas a existência depende única e exclusivamente das escolhas de Ferrara como criador.

 

Todo o filme vai se estruturar em partes e contrapartes, em fluxo e contrafluxo, não exatamente seguindo alguma proporção. A câmera pertence ao corpo e ao olhar de Devereaux; os planos do filme se comportam de acordo com os movimentos e o ritmo desse personagem. Trata-se de uma câmera não só observadora, mas especialmente presente na ação, sem chamar atenção a si. Os planos alongados por vários minutos possuem poder tanto de descrição quanto de “permissão” à existência dos elementos presentes na imagem. Eles respiram, e cada corte é uma nova inspiração rumo a outra exaustiva expiração que nunca se sabe exatamente quando virá. Em dois momentos, a expiração fica travada – quando Ferrara insere, sem maiores avisos ou indicações, flashbacks que se digladiam como novas contrapartes um do outro. Nestes instantes, um novo ritmo de respiração precisa tomar forma, e aquela expiração lá de trás deve aguardar os movimentos desse novo ar que toma o filme. Dobras sobre dobras. 

 

Bem-Vindo a Nova York é inteiramente construído a partir da tensão previamente dada fora do filme: assim como Dominique Strauss-Kahn, o personagem Devereaux vai ser acusado de abusar sexualmente de uma camareira de hotel. Ferrara leva em consideração a não-inocência do espectador e já parte do princípio de que tal acontecimento deflagrador é elemento de ligadura ao filme. Nesse movimento de libertação, Ferrara pode acompanhar o passo a passo de Devereaux rumo àquele momento específico da maneira que lhe convém. O cineasta opta por desenhar um homem, de um lado, respeitado pela habilidade política e, de outro, dono do hábito de estar sempre rodeado de mulheres disponíveis para festas e sexo, esteja onde for, à hora que for. A sexualidade é onipresente nesse homem enorme, de quem o grunhido advindo de uma felação o aproxima de algum tipo de animal incontrolável e insaciável. 

 

Após duas ou três sequências de sexo “limpo” (consentido), surge em cena a figura da camareira, a circular pelos corredores do hotel e em seguida entrar no quarto onde está Devereaux. Ela é atacada no banheiro, em construção de bastante impacto que coloca o personagem numa posição incômoda diante do olhar do espectador. O filme se impõe o desafio de uma “invenção de formas fílmicas que expressem o que é inadmissível em termos de comportamento, moralidade, narrativa, imagem, som e especialmente em termos de uma invenção arquitetônica e de composição”, conforme palavras de Nicole Brenez. Da farra lúdica com bebidas, sorvetes e estimulantes a escorrerem de corpos femininos risonhos e embriagados e do voyeurismo de assistir a duas estrangeiras se esfregando, tem-se agora a contraparte, o horror de um estupro em trajes de onipotência (“Você sabe quem eu sou?”, pergunta Devereaux antes de agredir a camareira). Poder, sexo, violência, agressividade: eis o coquetel do mal de Abel Ferrara.

 

A complexidade da situação domina o lado de cá da tela, o exterior, a moralidade de cada espectador. Do lado de lá, dentro do filme, Devereaux parece não ter consciência da diferença entre o ato lúdico e o ato violento. Sobre Gangues do Gueto (2000), Brenez já chamara atenção para o fato de que pode ser impossível se livrar do mal “quando ele não é mais vivenciado como transgressão criminosa, mas como norma cotidiana”, algo perfeitamente aplicável ao protagonista de Bem-Vindo a Nova York. “Esses personagens não sofrem nenhuma metamorfose; ao contrário, estão presos às suas identidades fechadas, capturados e grudados a si mesmos” (Brenez). A perturbação do filme de Ferrara vem tanto da imagem-fantasma que nos aflige (o ataque à camareira) quanto da indiferença de Devereaux em relação ao mesmo instante. “Eu não sinto nada”, diz ele a um terapeuta. A frase ecoa outras manifestações relativas ao isolamento afetivo do personagem e a seu distanciamento do relato do filme (“Minha vida sempre foi esvaziada”, “Eu não quero parar, nem quero tentar parar”). Num momento de autêntica raiva, ao olhar frontalmente a câmera e gritar, Devereaux parece responder aos julgamentos morais que podem atravessar a tela e atingi-lo: “Eles é que tentem se foder e consigam!”.

 

Ao longo do filme, nada de muito substancial se modifica na relação de Devereaux consigo mesmo ou com o ato pelo qual é acusado. É na relação construída com o espectador que o filme se metamorfoseia: a cada novo encontro do personagem com mulheres, a imagem-fantasma volta para assombrar. Ferrara joga com isso especialmente nos dois flashbacks. No primeiro, acompanhamos o flerte de Devereaux com a filha de um conhecido, e tudo corre tranquilamente; no segundo, ele abusa violentamente de uma jornalista após flerte bastante similar ao anterior. A dobra definitiva do filme se dá no desfecho, quando outra empregada entrar em cena. Ela é discretamente assediada por Devereaux. Aos poucos, a tensão se constrói, sem para isso a câmera se mover ou o tom do filme mudar. Quando ela se retira do lugar tranquilamente, Devereaux novamente olha diretamente para a câmera (para o espectador), em silêncio. Tela preta. 

 

O que Abel Ferrara desenvolve em Bem-Vindo a Nova York se aproxima do que André Bazin chamava de “metafísica” da linguagem, ao se referir às relações intelectuais do espectador com a imagem e suas modalidades psicológicas surgidas a partir da utilização da profundidade de campo: “Ela (a profundidade de campo) implica uma atitude mental mais ativa e até mesmo uma contribuição positiva do espectador à mise-en-scéne (…) De sua atenção e de sua vontade depende em parte o fato de a imagem ter um sentido”. No caso específico do filme de Ferrara, a utilização dos planos longos não só nos aproxima do significado da imagem ao mesmo tempo em que nos afasta de suas implicações psicológicas, mas principalmente nos permite acompanhar Devereaux como a ampliação física do ator Gerard Depardieu – ou de sua contraparte, de certa maneira.

 

Há aqui uma nova dobra, desta vez de Depardieu para dentro de si mesmo. Apesar de se apresentar claramente como narrativa ficcional construída em cada detalhe de sua representação, Bem-Vindo a Nova York pode se configurar também como um documentário sobre o corpo de Depardieu – o corpo, o olhar e os grunhidos. Já antes dos créditos, surgem imagens de uma suposta entrevista que, após alguns segundos, imaginamos ser do ator sobre o personagem. Mas nada nos afirma exatamente isso. Qual a garantia de que, ali, já não estamos com Devereaux? Inversamente, em que medida os roncos de Devereaux no sexo não são roncos de Depardieu para além da interpretação de um personagem de ficção? A nudez do corpo na prisão, o ato de tomar banho ou escovar os dentes em casa, a dicção ao resmungar nas discussões com a esposa, tudo é de Devereaux, porém, acima de qualquer outro elemento, é tudo de Depardieu, a surgir aos nossos olhares em situações nas quais ele está inserido na mecânica do filme e também como figura física existente fora dali (de alguma forma aproximando-se do que já fora feito com Harvey Keitel em Vício Frenético).

 

As escolhas de Ferrara incidem diretamente no fato de ele tratar de um caso massivo e midiático: ao optar por narrar a “realidade”, cabe ao filme moldar uma essência particular de seu próprio real, de construir, através da presença do ator/personagem, aquilo que lhe dê autonomia dentro da encenação. Depardieu se mistura a Devereaux até o limite do inseparável, e vice-versa. Jacques Rivette, em 1950, escreveu: “Quando paramos de procurar por elas, as descobertas visuais se dão uma após a outra sem interrupção, na ligação que fenômenos observados sucessivamente têm entre si, na relação deles com um olhar do qual sequer suspeitam: eles não estão operando por meio desse olhar. Eles estão em seu estado natural”. 

 

Mesmo em sua construção opaca, Ferrara não evita inserir “comentários” dentro do filme. Pois, afinal, trata-se do filme de um dos realizadores mais expressivos do cinema contemporâneo, e o universo do criador nada mais é do que a “completa eflorescência” de seu olhar, como escreveu Rivette. No caso de Ferrara, ele está sempre, de alguma maneira, falando sobre si mesmo. “É só pôr mãos à obra, ou seja, passar do objeto ao sujeito, pois o objeto não foi fabricado senão em função do sujeito, ele é um vasto espelho que só devolve a imagem truncada do autor e de sua ‘visão’ artificial do mundo” (Jean Douchet).

 

Há vários momentos luminosos dentro da narrativa que, de pouca duração, parecem piscar para a consciência de estarmos dentro do universo ferrariano. São planos, digamos assim, “inúteis” ou “irrelevantes”, cuja inserção inesperada (em alguns casos, surpreendente) enriquece a construção das sequências em seu entorno. É a garota de programa seminua a olhar o céu noturno após horas de sexo a três; o rosto do jovem negro no tribunal, a ser julgado imediatamente depois de Devereaux; a grade da prisão reenquadrando o olhar esvaziado de Devereaux; o mesmo personagem, agora em prisão domiciliar, gargalhando enquanto assiste a Domicílio Conjugal (François Truffaut, 1970); as brevíssimas inserções documentais do circo midiático em torno do caso, num registro de vídeo distinto da fotografia habitual do filme; Devereaux (ou Depardieu? Ou Ferrara?) refletindo sobre a existência e o cosmos numa série de planos noturnos em que as luzes da cidade se mesclam e se imbricam no corpo da imagem fílmica, nos únicos momentos de Bem-Vindo a Nova York em que há dissonâncias entre som e imagem. 

 

A escolha por abrir o filme com a canção patriótica norte-americana America, the Beautiful (aqui na voz de Paul Hipp) e o plano aberto do aeroporto em que se lê o título original do filme (“Welcome to New York”) enquanto Devereaux é escoltado para a prisão são outros dois comentários de certo humor negro disfarçado durante o filme. Em Bem-Vindo a Nova York, Ferrara busca, mais do que em vários momentos anteriores de sua obra, o que Nicole Brenez chama de “exumar a violência latente em uma imagem padrão (a vida cotidiana), com a intenção de reconstruir suas determinações mais obscuras e menos aceitáveis”. O monstro está solto no filme tanto quanto sempre vai estar quando a projeção terminar. Abel Ferrara nos apresenta um espelho de parque de diversões em que a imagem refletida entorta todo o corpo. Sentimos alívio quando, enfim, deixamos de olhar para esse espelho e decidimos olhar um reflexo “comum”. Mas a imagem torta permanecerá sempre torta, pois o espelho continua lá. 

 

Marcelo Miranda

 

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