Ano VII

Jersey Boys

sexta-feira jul 11, 2014

Jersey Boys – Em Busca da Música (Jersey Boys, 2014), de Clint Eastwood

Desde meados da primeira década deste século, Clint Eastwood tem explorado a história dos Estados Unidos em seus filmes. O primeiro capítulo dessa revisão chama-se A Conquista da Honra, e ainda é o mais forte. Ali se questionava a imagem símbolo de uma vitória, a americana, forjada pela mentira e pela encenação. Seguiu-se o outro lado, o japonês, em Cartas de Iwo Jima. Era apenas um contraponto. A história americana retoma, aparentemente de forma indireta, mas com enorme força, em A Troca. Em jogo a corporação policial, instituição falida em meio à Grande Depressão. A história aqui é pano de fundo para o drama de uma mulher, telefonista, que tem seu filho raptado (o mal que sai da mente humana sempre à espreita na sociedade americana, erguida sob o signo da violência). A polícia, desacreditada, é pressionada a encontrar uma solução para o caso. Não tinha como dar certo. Outras instituições, como a psiquiatria, com suas técnicas então primitivas de choque diante do motivo mais irrisório, entram em debate. Um padre resolve parte da parada. J. Edgar vem em seguida. É um trabalho incompreendido e criticado por motivos bobos: as maquiagens são ruins. São mesmo, mas não prejudicam a agudez com que Eastwood observa a intimidade de um personagem importante da história.

Chegamos enfim ao mais recente episódio. Jersey Boys cobre três décadas da música americana, passando por diversos pontos importantes da música pop: a escalada do doo wop, a fábrica de compositores no Brill Building, o fenômeno dos Beach Boys, a invasão do rock, Ed Sullivan e, claro, o sucesso dos Four Seasons. Há também as cenas que escancaram a vida íntima dos músicos: o problema com as dívidas de um deles, a falência do casamento de Frankie Valli, o músico que sente-se eclipsado pelo talento dos outros do grupo ("se entre os quatro, você é o Ringo, melhor ir para casa"), as dificuldades do compositor Bob Gaudio com as mulheres, a relação do grupo com um mafioso (Christopher Walken), o ciúme que corrói a amizade entre eles.

A cena em que eles estão reunidos com o mafioso para discutir o pagamento de uma dívida para um agiota é das mais graves, e recebe um tratamento bem mais cadenciado na montagem.  É um longo momento de crise que precipitaria o fim definitivo da banda e o início da carreira solo de Frankie Valli, em parceria com seu compositor predileto, Bob Gaudio. A relação entre Valli e Gaudio, aliás, lembra a de J. Edgar com seu assessor: uma cumplicidade homoerótica reprimida. Nesse momento o ritmo desacelera, a cena se estende corajosamente impondo um outro tempo ao filme. Daí em diante, elipses brilhantes e um epílogo de fábula homenageando os musicais inocentes do início dos anos 60. A história aparece, por exemplo, enviesada no frenesi dos metais que fortalecem a versão ao vivo do grande hit da carreira solo de Frankie Valli, "Can't Take My Eyes Off You", canção tornada hino da despedida da inocência em O Franco Atirador (com o mesmo Christopher Walken no elenco). No filme de Michael Cimino, é a música que encerra um ciclo. Depois dela, o horror da guerra, episódio triste da história americana que Eastwood sonega com uma elipse que nos leva diretamente a 1990, na reunião do grupo original para um show no Rock 'n' Roll Hall of Fame.

Por essas e outras neste filme fica ainda mais claro o caminho seguido nos anteriores: forjar uma revisão da história dos EUA sob o signo da história do cinema americano. Fingindo aproximar-se de Martin Scorsese, uma vez que o tema é semelhante aos tratados pelo diretor de Cassino, e o tom ligeiro também, Eastwood chega de fato em Robert Aldrich, sobretudo na sucessão de planos curtos que visam um enclausuramento dos personagens. Existe ainda um forte lado aldrichiano na maneira como os personagens tornam-se prisioneiros de seus instintos, principalmente Tommy De Vito, o mais problemático da banda com seu enorme ego, mas também, de certa maneira, Frankie Valli, atrelado ao amigo mais velho que fez dele o que ele é.

A alusão mais forte nesse período de revisionismo eastwoodiano é a de Frank Capra, cujo Aconteceu Aquela Noite é não só uma inspiração distante para A Troca, é também uma baliza para a personagem de Angelina Jolie no desfecho. Em Jersey Boys, não há alusões, mas filiações. Eastwood vai às fontes de Scorsese para tratar de um tema scorseseano: Aldrich, por certo, mas também Anthony Mann – via Música e Lágrimas, a monumental cinebiografia de Glenn Miller cujo parentesco com o novo de Eastwood é evidente. Mais ainda que no filme de Mann, em Jersey Boys os principais acontecimentos históricos correm paralelamente às motivações dos artistas, que desejam unicamente proporcionar prazer para o público por meio de suas artes. O Glenn Miller de James Stewart vai tocar para os soldados na guerra, acreditando sobretudo no poder de sua música, mas o tempo todo fica distante do conflito, como se fosse algo efêmero, até que se torna vítima da história quando o avião que o transportava sofre um acidente. Os Four Seasons de Eastwood passam como plumas por conflitos e tensões da Guerra Fria (a Guerra da Coréia e a Crise dos Mísseis, por exemplo) e fornecem aos jovens da época uma compensação pelo grande trauma do assassinato de JFK e da Guerra do Vietnã. Esses acontecimentos praticamente não aparecem no filme, mas de alguma maneira estão ali, trazidos pelo que o espectador americano, conhecedor da história de seu país, pode evocar pela simples ambientação de época – lembrando, mais uma vez, que inúmeros filmes tematizaram esses acontecimentos, e que a iconografia de Jersey Boys lida obviamente com essa consciência do público americano. Clint Eastwood, assim, mostra-se mais uma vez um excelente historiador, sem a necessidade de lidar diretamente com os traumas passados.

Sérgio Alpendre

P.S. Quando esta crítica foi publicada, Jersey Boys já saiu de cartaz em São Paulo, após duas semanas apenas em circuito, durante a Copa do Mundo. O circuito comercial é um doente terminal.

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br