O Diabo Veste Farda
O Diabo Veste Farda: O Cinema Americano de William Lustig
William Lustig é um cineasta do horror. Embora não realize exclusivamente filmes que se encaixem neste gênero cinematográfico, o horror está imantado ao seu olhar e não é fornecido apenas pelo tema. Para o nova-iorquino, o plano é sempre uma casa mal assombrada, uma possibilidade de escuridão, de segredo escondido atrás da porta de dobradiças rangentes. Mesmo que o assunto seja mundano – uma dona de casa entrando em uma casa de subúrbio às 15h -, Lustig parece, invariavelmente, acoplar à câmera um dispositivo criado por algum especialista em parapsicologia, que revela a face malévola do mundo, impossível de se observar a olho nu. Lustig é o radiologista macabro da sociedade norte-americana.
Atento às mudanças que os anos marcaram no rosto da América, o cineasta montou, de filme em filme, um grande retrato político, mascarado de filme vagabundo . O mosaico do medo, iniciado com Maniac (1980) e concluído com Uncle Sam (1996), narra a perpetuação do terror nos Estados Unidos, em progressão geométrica. Como escreveu Padre Agostinho, o diabo pode assumir diversas formas – dançarinas nuas, monge bondoso, Papa – para ludibriar o virtuoso. Lustig amplia a fábula. Não só o demônio assume várias formas, como se propaga, tal uma peste.
A narrativa tem início em 1980, com a fonte primeira do terror, que é o homem, bicho solitário habitante de cavernas. O satanás, então, toma a forma de um maníaco serial killer. É da mão pegajosa e suada do homem louco que os cadeados tentam proteger, é o freak solitário que os olhares temem ver quando notam a presença de uma sombra a se aproximar por trás, em uma estação de metrô às 22h. Do homem, segue-se para o grupo. Em Vigilante (1983), é o bando quem provoca medo. A cidade passa a ser aterrorizada pelos grupos étnicos que invadem o território dos brancos. O desvio comportamental, o caráter lunático, já não se restringe ao assassino com problemas psicológicos que mata mulheres . A violência de bando não precisa ser acesa por um trauma profundo. Basta uma pequena faísca para propaga-la. A cidade, esse Monument Valley de concreto, vista de longe, é uma paisagem bonita, mas, basta olhá-la com atenção para enxergar-lhe os monstros, como expõe o diálogo entre o personagem de Robert Forster e Fred Williamson – eis a propaganda da câmera de raios x do Dr. Lustig, o parapsicólogo da quinta avenida. O horrendo ataca em formação de gangue e a lei é incapaz de proteger o cidadão comum. Natural, portanto, que o satanás use um distintivo no próximo segmento do mosaico.
Em Maniac Cop (1988) é a própria lei o bicho papão. O policial maníaco, mais do que um assassino, é, de fato, a personificação do monstro invencível, do mal que já se assume como descaradamente (desmascaradamente?) como entidade do sobrenatural. O dispositivo parapsicológico deixa de ser necessário: o fantasma, o morto-vivo, o demônio é mundano e circula pelos becos de Nova Iorque portando um cassetete. O fogo, índice diabólico que a câmera de Lustig registra com tanta poesia ao final de Vigilante – mais do que signo da destruição, o fogo é a pegada do diabo, é a prova luminosa, sedutora e disforme de que ele esteve aqui; o carro ardendo na escuridão, ao final do longa de 83, com o vento dando às chamas formas impossíveis, vento gélido e irritantemente constante, que faz mover-se a grua até a câmera compor um plano apocalíptico e profundamente amargo da cidade da maçã – torna-se ícone, elemento concreto: não é por acaso que o policial/fantasma atormentado terá o corpo em chamas tanto em Maniac Cop 2 (1990) quanto em Maniac Cop 3 (1993), em que o monstro, carregando uma vítima também em chamas, forma a imagem de uma cruz em labaredas ardentes.
Apesar das explicações sobrenaturais, o mal tem uma origem: o próprio homem. Foram homens quem condenaram, injustamente, Matt Cordell e, ao lhe enviar à cadeia, o entregaram aos bandidos presos anteriormente pelo policial. A injustiça fez nascer o anjo vingador. O soldado em Uncle Sam, que também assume a forma de anjo vingador, sente-se igualmente injustiçado: ao ser morto na Guerra do Golfo, Sam Harper retorna à sua cidade natal e provoca uma matança durante o desfile de 4 de julho. Vestido com as roupas e a máscara do velho mascote, mata, à machadadas, Lincoln, Washington e os habitantes da cidadezinha caipira que celebram as 50 estrelas e as 13 listras. Mata a história americana, ataca o próprio país. O Tio Sam é o demônio e quem o pariu foi a América. Homem, bando, lei, nação. O satanás está em todo lugar e o inferno, com a sua poesia do fogo, é na Terra. Resta aos seres humanos reagir, sem deus, sem a moral do bem, sem crucifixo ou outros amuletos da sorte e da religião (um dos pouquíssimos objetos cristãos presentes na filmografia de Lustig é, justamente, um cruz em chamas formada pelo corpo de Cordell e a vítima).
É só ao fim do mosaico, quando a história do horror através do tempo foi inteira narrada, é que se fazem perceber aspectos que antes estiveram escondidos. As obras de Lustig formam um grande bloco, e é preciso vê-lo como tal. A bandeira americana no alto do prédio de onde Robert Forster empurra o bandido, em Vigilante, a obra mais politicamente radical do diretor, é menos uma ostentação do orgulho patriótico a balançar nos ventos reacionários do que um manto negro de violência histórica a envolver a noite. O solo daquela nação conhece o gosto do sangue derramado nas brigas por terras, nas guerras entre Apaches e cowboys (Woody Strode, mito fordiano, paga na cadeia pelos crimes que cometeu nas pradarias?). A Nova Iorque de 1983 é território de revanche: não do homem branco contra os malfeitores latinos, e sim o contrário. A reação não parte do cowboy, mas do tribo Apache/latina. A colheita daquilo que foi semeado com sangue há 100 anos é feita à foice. Não há trauma psicologicamente profundo para atormentar a gangue e explicar a violência gratuita praticada por ela. Há, sim, um trauma profundo na terra, no vão cavado no solo para sustentar o trilho, o trem, a expansão econômica e a extinção de tribos. O vão, ora ou outra, teria mesmo de vomitar seus fantasmas. É possível empunhar armas e caçá-los, no entanto, é impossível alcançar algum tipo de redenção com tal gesto, como denota o rosto de Forster depois de matar todos os envolvidos no caso de impunidade ao assassinato de seu filho.
O olhar contaminado pelas estratégias do cinema de horror, empregado por Lustig para filmar Nova Iorque, é, assim, uma maneira de trazer à tona os fantasmas de um passado não tão distante, que caminham por baixo da terra, que se escondem nas sombras dos becos – todos estes fantasmas se reúnem para celebrar a morte do juiz e a consagração do Juízo Final, que é o já citado último plano de Vigilante; celebram, silenciosos e invisíveis, o devir de um futuro distópico, um futuro próximo em que a imagem de um objeto urbano em chamas chocaria, nesta mesma cidade, milhões de pessoas.
Wellington Sari
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