Jogo das Decapitações
Jogo das Decapitações (2013), de Sérgio Bianchi
Valorizar uma obra de arte somente pelo fato da mesma buscar uma abordagem temática de questões sociais que estão na ordem do dia pode ser tão ou mais equivocado do que a postura do realizador que lança mão desse artifício como um método nada crítico, mas sim extremamente vaidoso, de autopromoção. Ao promover uma forte adesão à questões inerentes ao momento histórico de sua realização, os filmes de Sérgio Bianchi acabam nos solicitando um posicionamento não só perante aos problemas que procuram abordar, mas igualmente em relação à sua visão de mundo e ao seu método de abordagem para com as mesmas – algo que pela sua já conhecida virulência acaba sempre por transitar entre o espanto e a desconfiança. Em seu novo filme, Jogo das Decapitações, a situação não é diferente.
De alguns temas e momentos: 1979, Maldita Coincidência, decadência do pensamento libertário dos anos 70, questionamentos acerca de como lidar com essa amarga ressaca histórica; 1988, Romance, e a falsa sensação de abertura política no Brasil pós-ditadura; 2000, Cronicamente Inviável, inventário das ubiquidades de um país navegando em uma década de franco neoliberalismo; 2005, Quanto Vale ou é por Quilo?, tal como em A Causa Secreta (1994), um retorno a Machado Assis para se questionar o tom de celebração em torno de uma suposta integração racial que definitivamente não aconteceu; 2013, Jogo das decapitações, uma década de governo que se vendeu enquanto esquerda, a memória ainda má resolvida do período ditatorial, a violência e hipocrisia do jogo político a qual pouco se alterou.
Se há algo que permeia todos esses filmes – e outros não citados do diretor, tais como Mato Eles? e Os Inquilinos – é a persistência de uma espécie de raciocínio selvagem bianchiano. Na ânsia de expor todas as mazelas, hipocrisias, violências submersas, discursos subjugados e subjugadores, a metralhadora giratória de Bianchi parece não poupar nada: não sobra alicerce algum. Assim, ao mesmo tempo em que surge, pelo choque e exasperação, uma natural desconfiança em relação a validade de sua abordagem acerca de tais temas, acompanha-nos uma profunda sensação de desamparo, desorientação. Ao não sucumbir nunca à uma conciliação, ao bancar essa falta de alicerce, nunca permitindo uma adesão completa ou fácil sensação de conforto para o receptor, o cinema de Bianchi atinge um pensamento crítico de vitalidade rara.
A primeira vista Jogo das Decapitações se assemelha muito a Romance: um protagonista em uma turbulenta relação de busca e reconstituição da memória de um polêmico pensador que acaba de falecer. Lá a jornalista Regina (Imara Reis) e o polêmico intelectual Antônio César (Rodrigo Santiago), aqui o mestrando Leandro (Fernando Alves Pinto) e Jairo (Paulo César Peréio/João Velho) seu pai, que durante o regime militar se firmou como uma figura provocativa tanto para a esquerda quanto para a direita. Contudo, Jogo das decapitações se desvencilha formal e dramaturgicamente das narrativas mais convencionais de Bianchi, centradas mais em indivíduos ou pequeno grupo de pessoas (Romance, A causa secreta e Os Inquilinos) sofrendo uma constante infiltração de seus filmes que galgam um inventário em formal de grande painel social e histórico (notadamente Cronicamente Inviável e Quanto Vale ou é por Quilo?).
Nesse processo de infiltração construído por Bianchi incorpora-se à forma a crítica que se busca em sua temática: o assombro e o choque que surgem das contradições para as quais o diretor aponta sua câmera se repetem em seu processo de encenação e de construção formal. A trajetória convencional do protagonista dividido (aqui entre uma esquerda mais tradicional – encarnada por sua mãe e vivenciada em sua pesquisa de mestrado – e a opção pelo desbunde enquanto forma de crítica social – evidentemente a figura de seu pai, Jairo) em busca de uma memória que o assombra é constantemente interrompida por cenas que buscam traçar um painel social, histórico e político (principalmente aquelas em que o personagem de Silvio Guindane aparece e em tom provocativo, mais do que qualquer outro personagem, busca expor/dilacerar o processo de conciliação pelo qual a esquerda teve de passar para alcançar e se manter no poder, mas também em pequenos momentos como a situação envolvendo a empregada ou o pedreiro na sala do orientador de Leandro, que se repetem constantemente).
As fraturas na narrativa se amplificam ainda mais com a inserção tanto de trechos de um suposto filme rodado por Jairo nos anos 70 (trechos retirados do primeiro longa do próprio Bianchi, Maldita Coincidência) e pelos pesadelos e visões vivenciadas pelo próprio protagonista. O desarme perante as contradições evidenciadas se ampliam no processo de encenação de Bianchi: diferentemente de seu filme anterior, Os Inquilinos, retoma-se alguns procedimentos notadamente antinaturalistas, como a presença de grandes e frontais discursos por parte dos personagens, utilização de personagens-tipo e cenas que beiram o ilustrativo (como a situação da cracolância). Em tempos em que o pensamento crítico em arte parece frequentemente dar lugar à mistificações do mais variados tipos, os métodos de Bianchi causam estranhamento e desconforto, perpetuam as inquietações que traça violentamente em seu campo temático.
Na última cena o desarme final: se até então Jogo das Decapitações lembrara Romance, a queda de Leandro perante a soturna – mas sempre de prontidão para a agir – violência que mantém a engrenagem social em ação (e a qual ele observara quase incrédulo ao longo de todo o filme), parece completar o selvagem processo de retirada de todo e qualquer alicerce. Complementação e perpetuação de seu olhar crítico – nada sobra, não há conforto, é preciso sempre manter o arco teso – e longe de um niilismo fugidio (como a primeira vista pode sugerir) distancia-se também da crítica que procura fixar a cooptação cínica pelo sistema (Romance) caminhando para o final que busca na exasperação e perpetuação desse assombro seu poder crítico: algo muito próximo do final de Mato Eles?.
Guilherme Savioli
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