Ano VII

Balanço do 3º Olhar de Cinema

terça-feira jun 10, 2014

Balanço do 3º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba

por Heitor Augusto

 

Sobre a competição

Houve apenas um filme com aquela evidência que torna inevitável não notá-lo: E Agora? Lembra-me? (não elegível para o júri da crítica, do qual fiz parte, por já ter sido premiado em Recife). Houve um filme bom, A Vizinhança do Tigre (na revisão, suas qualidades aumentaram e ele ganhou mais solidez). Houve dois filmes interessantes e que quase são, A Revolução Zanj e Branco Sai, Preto Fica (pena que não encontrei tempo para escrever com mais vagar do filme, pois ele merece atenção).

O restante é nulo. Não necessariamente ruins (alguns são), mas nulos, que não apontam para lugar nenhum como cinema – ou se apontam é para um lugar inócuo. La Mia Classe é disparado o pior, tanto ideologicamente (a mea culpa colonizadora europeia, que abordei neste texto) quanto como filme (é um subproduto do “cinema de qualidade europeu”, com suas peças no lugar, fotografia bonita e o tal soco no estômago).

Há os que guardam um fetiche bobo pela forma, em que a meticulosidade da construção tenta ser um mérito em si. Forma, que cai bastante quando adota o ponto de vista da vítima, e Mouton, com seus “criativos” fade out, seu enredo previsível e sua atmosfera de desconforto óbvio, pagando alguns dividendos para o cinema de Bruno Dumont.

Há os que se justificam apenas porque são “esquisitos”, “diferentes” – como se o selo de excentricidade os legitimasse de antemão, caso de Mary is Happy, Mary is Happy! (lembrando que entre os filmes incomuns, Leviatan, que fez barulho na edição passada do Olhar de Cinema, é muito melhor). Sai um pouco dessa curva The Kidnapping of Michel Houellebecq, justamente por ser despretensioso (só quer mesmo é brincar com a quebra de expectativas e com a estranheza), sendo bastante divertido, e só.

Há aquele que parece ser interessante, mas com o passar dos dias simplesmente some da memória (How to Disappear Completely). E há aqueles que me fazem perguntar como um festival que tem ganhado tanta repercussão já tão cedo o selecione e ainda mais para a Mostra Competitiva. Falo de September, um filme constrangedor (que tal o final com o cachorro na praia?), e The Green Jacket, fraquíssimo (que tal aquela câmera-navio típica de Fernando Meirelles?).

Da competição, permanecem, de fato, três filmes. Desses, esperava mais de Branco Sai, Preto Fica. Adirley Queirós, seu diretor, é um dos mais interessantes acontecimentos do cinema brasileiro recente, tem um olhar que foge do esperado e um engajamento com a forma híbrida um pouco distinto do que conhecemos. Só que ao lado da sua proposta inusitada e bem sacada (uma ficção científica documental) estão muitos problemas de ritmo para entrelaçar os três personagens – o miolo do filme hesita demasiadamente.

Revolução Zanj é o que entrega as imagens mais belas, que culminam num fortíssimo plano final. Seu interesse histórico e político chama também a atenção. Mas é um filme com o qual se luta para permanecer dentro dele. Quando se pensa em desistir, ele entrega uma cena forte; quando se pensa que agora vai, ele se perde na maresia.

Resta, pois, E Agora? Lembra-me?, encantador filme de Joaquim Pinto, que constroi uma simbiose do homem com a natureza, um reencontro quiçá filosófico, com uma sensibilidade aguçada. Um documentário que cultiva a vida para escapar da morte, ou que por estar consciente da morte faz-se vida; um testemunho e um agradecimento aos amigos; uma reflexão sobre a vida primeira, antes da dos homens, e sim do cosmos; um filme, basicamente, de amor (por Nuno, pelas memórias, pelos cachorros).

 

A melhor banda de todos os tempos da última semana

Tirando o filme de Pinto, entre os longas espalhados por outras sessões, vale nos atermos a Hard to be a God, filme póstumo de Aleksei German, diretor dos bons Meu Amigo Ivan LapshinKhrustalyov, Meu Carro!, que ganhou uma retrospectiva da Mostra de Cinema em 2011.

Filme pensado e pesado por muitos anos, cuja realização, o próprio tornar-se filme, significou uma verdadeira empreitada. Hard to be a God expressa uma consciência cênica e uma engenharia de construção do plano (muitos planos-sequência com a câmera se posicionando/transitando por lugares praticamente impossíveis) invejáveis, além de abrir os poros para uma multiplicidade de leituras (fala-se do sagrado? Dos processos de dominação? De uma existência humana pré-renascentismo? Um comentário sobre a ignorância? Da inserção do cinema num contexto de transformação?).

Ou seja, um filme com méritos para lá de suficientes. Antes da última sessão, o curador Gustavo Beck fez uma breve apresentação, na qual disse que, para ele, Hard to be a God é “o filme mais importante da história do cinema” (não lembro se exatamente com essas palavras, mas certamente caminhava nessa direção). Ainda que entenda a paixão pelo que o filme representa e o desejo de lhe dar atenção, me incomoda que tenha sido apresentado dessa maneira, já blindado, com pouco fôlego para lidar com ele senão nesse patamar.

Essa desconfiança com o incensamento de filmes ao Olimpo é mais ampla, não se restringe a esse episódio e abarca especialmente a crítica. Em quantos festivais já não fomos e saímos anunciando “filmes fodas”, “filmes definidores”, “filmes lindos”? Se é um “filme foda”, por que não deixá-lo decantar, sem a pressa desesperadora de anunciá-lo como tal? E quantos desses “filmes fodas” se confirmaram? Anunciar um filme foda a cada esquina não atrapalha justamente a percepção de quando um filme desse aparece, não embaralha a lucidez?

Aí eu lembro do Mojica no filme do Jairo Ferreira Horror Palace Hotel ou o gênio total: “Então, eu achei que genialidade estava sendo um troço boçal, todo mundo aí se torna gênio, gênio, gênio. Então temos de inventar um novo nome, Deus… ou Deusão, quem sabe, um nome para o novo gênio, quem sabe? Agora qualquer elemento que toma o café num pires diferente se torna gênio”.

 

Alguns curtas e médias

Por desencontro da programação, um atraso de sessão e obrigações relacionadas a júri (que me custou dois filmes de Straub), perdi alguns programas de filmes que estava curioso para assistir (Coice no Peito, Master Blaster – Uma aventura de Hans Lucas na nebulosa 2907N) ou que ouvi boas coisas (My sense of modesty). Atenho-me, pois, brevemente a um ou outro filme que me chamou atenção.

Taprobana, comédia sobre os bastidores da vida de Camões durante a escrita de Os Lusíadas, retoma (não sei se intencionalmente) um espírito de desbunde comum aos filmes em super-8 de Edgar Navarro. Interessante ver aquela imagem bonita em contraste com os gestos pouco polidos de um cânone.

A Chamada é, possivelmente, o mais acertado e correto entre os que vi. Um comentário muito preciso sobre as fronteiras (entre direção e personagem, entre personagem e o mundo exterior). Apresenta, ao longe, imagens de uma Cuba congelada no tempo (o grande evento do povoado é a instalação de um telefone em pleno século 21) que se opõe ao relato vivo e apaixonado da revolução pelos olhos de Lázaro, o personagem.

The incomplete chama atenção pelo equilíbrio do olhar ao fetiche masoquista de seu personagem (não desemboca numa adesão chapa-branca, nem numa visão de “lá ele, o estranho”, o que é louvável). The swimming trunks é dos filmes fofos e sensíveis que não atende ao meu gosto, mas que parece ser necessário para formação de plateia.

Verona tem uma atmosfera e um cheiro muito agradável, especialmente o musical (faz-se uma passagem da música dance dos anos 80 para Cry me a River, de Justin Timberlake, num bonito plano em que a imagem de Sophia Loren observa o exterior). A solução da reaproximação final também é boa. Acho pouca equilibrada, porém, as interações em cena de Germano Melo e Márcia Pantera. O desejo do morto continua mostrando que algo muito interessante acontece entre os curta-metragistas paraibanos – o filme cresce muito a partir da grande cena no jantar de família.

 

A cidade e sua participação

Pode ser um gigantesco equívoco de quem ficou pouquíssimo tempo na cidade e conectado a um circuito bastante restrito, mas senti que falta de envolver muito mais a cidade ao festival. Esse é um trabalho gradativo que, imagino, deve ter evoluído em relação à primeira edição. Fico com a sensação, porém, de que ainda é possível aproximar-se mais dos estudantes e das universidades, talvez com iniciativas dos próprios professores chamando para discutir, em sala, alguns dos filmes do Olhar de Cinema.

Também fiquei com vontade de ver um público com menos cara de “pessoas que frequentam o cinema”. Gente diferente, de lugares e classes diferentes, não tão acostumada ao que, grosso modo, chamamos de “cinema de arte”. Possivelmente mais oficinas e debates (projetando que no ano de 2015 o evento terá um orçamento maior), trabalhando de maneira mais aguda com a formação do olhar para o público, ajudem a atrair pessoas de background distintos.

A propósito da relação com o local, a existência da mostra Mirada Paranaense é fundamental. Torço para que esse ciclo positivo da produção se estabelece e que se crie condições adequadas para que realizadores se estabeleçam além daqueles nomes que já conhecemos (Rafael Urban, Rodrigo Grota, Fernando Severo, Marcos Jorge, Larissa Figueiredo, Aly Muritiba…)

Evidente que esse diagnóstico pode ser um equívoco de quem não está tão a par da realidade curitibana, mas saí com essa sensação.

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