Dia IV – Da violência
Dia IV – Da violência (A Vizinhança do Tigre, Mouton, Forma)
por Heitor Augusto
A coisa mais forte em A Vizinhança do Tigre, longa híbrido (sim, mais um filme híbrido) dirigido por Affonso Uchoa, é o manejo da violência, a intensidade de sua presença nas relações até mesmo onde o carinho transborda. E é esse manejo que causa tanto impacto no primeiro pico que o filme tem – da carta de abertura, na qual Juninho escreve para Cezinha, um amigo preso, sobre como anda o bairro, até a cena típica de bromance entre Neguinho e Juninho, que encenam uma espécie de O Tigre e o Dragão versão periferia de Contagem.
Se observarmos pelo prisma sociológico, A Vizinhança do Tigre tem a potência de mostrar (e não demonstrar) as gradações que a violência ganha no cotidiano daquele bairro, mas que também é comum a muitos bairros periféricos do Brasil. Mas seguir uma tendência sociologizante seria dar vazão a apenas um dos aspectos do filme. Nos atermos apenas a ela é justamente como o filme não quer que lidemos com os personagens: sem lhes dar nomes e recheios, apenas chamando-os de “essas vítimas”, “lá eles” – que é exatamente o que limita bastante as intenções de La Mia Classe, italiano que anda arrebatando corações aqui em Curitiba.
A resposta do público na sessão de anteontem, que riu demais de várias passagens do filme, me fez lembrar como o filme é engraçado. Mais: como a ideia de jogar/brincar (“to play”, do inglês, dá mais conta dessa chave) é central para as relações dos personagens, especialmente os protagonistas Juninho, Neguinho e Menor. A Vizinhança do Tigre consegue algo que não é de se jogar fora: falar de pessoas que não existem para o cinema só porque ilustra o que é ser uma “pessoa de periferia”, mas também porque são pessoas.
Ou seja, tem características, comportamentos, traços, um jeito de falar etc. Cada um diferente do outro: Juninho, aquele que não quer voltar para o crime e que preza uma figura materna; Neguinho, o garoto de gramática e dicção absurdamente correta para o qual tudo é diversão (inclusive “brincar de matar” e brincar de dono de morro); Menor, o moleque que tenta exercitar uma vontade de se expressar pela arte (pintar-se, criar uma assinatura de piche etc).
O tigre – e aí cabe ao espectador dar-lhe o sentido que lhe apetecer – ronda. Brincar/jogar, penso, é quase um mecanismo para se proteger dele (como se houvesse um lugar em que é possível encenar a violência para não ter de exercitar a ilicitude dela mesma). Mas se está protegido? O plano final do skate, banhado pelos versos “eu queria mudar, mas o mundo me ensinou ser assim” é de uma tristeza profunda, que só aumenta quando surge o crédito (“Eldo, in memoriam”).
Carneiros estranhos
Há também no Olhar de Cinema filmes que, ao manejar a violência, mantém uma relação que beira um fetichismo infrutífero com a forma.
O primeiro é Mouton (Sheep, ou Carneiro), de uma previsibilidade assustadora. Repetição de uma rotina enxergada pelos mesmos pontos de vista, uma rabeira no final dos planos (deixar a câmera em suspenso, observando a cena após que ela acabou), fade out: trancos primários para indicar que algo naquele lugar não anda bem, que a sociabilidade das pessoas está para lá de torta. Quando a reação vem e o tal evento inesperado acontece, pensa-se: “jura?”.
O segundo, não à toa, se chama Forma, no qual se sucedem relações também estranhas, desta vez entre colegas de escola que se tornam, depois de certo ponto, patroa e empregada. Até a metade parece um filme realmente interessado em investigar a natureza dos personagens, os porquês de seus gestos e ações estranhas, agressiva invasão do campo psicológico do outro. Quando troca o ponto de vista, aí o filme da estreante Ayumi Sakamoto torna-se só um exercício de dar coerência a uma organização meticulosa da história, um esvaziado whodunnit movie. É pouco.
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