Sob a Pele
Sob a Pele (Under the Skin, 2013) de Jonathan Glazer
Após engolir mais uma de suas presas, a criatura encarnada por Scarlett Johansson para de frente a um espelho. Observamos ela de longe, a iluminação na casa é bem deficiente e uma escuridão encobre a maior parte do rosto da atriz. Ela encara o espelho por um bom tempo, hesitando, se aproxima dele e leva a mão ao rosto. Num corte seco vemos Scarlett saindo da casa e libertando o homem ao qual ela mesma havia, supostamente, posto fim momentos antes. Esse breve instante de Sob a Pele, novo longa-metragem de Jonathan Glazer, pode ser considerado uma espécie de linha divisória do filme: a partir daí instaura-se uma espécie de dúvida na personagem principal, algo que a retira do automatismo de suas ações predatórias de até então – e por conseguinte, abala o próprio filme, uma vez que, o que se viu foi somente o desenrolar inabalável das caçadas de Johansson.
A dúvida que se instaura e que consome Johansson – condenando-a ao fim – é reafirmada pelo o que acompanhamos na sequencia: a criatura predadora de se converte em uma fragilizada figura que não compreende sua própria existência física (a cena em que ela se despe na frente do espelho e nos momentos em que tenta comer um pedaço de bolo, se empolgar com uma música e por fim, manter uma relação sexual). Não se trata de uma carga moral que Glazer impõe à sua personagem, como se a predação do rapaz com rosto deformado a tivesse feito sentir piedade e por conseguinte tomado consciência dos efeitos devastadores de sua atividade (lembremos da cena da praia, na qual ela acompanha, impassível, a destruição de uma família e, posteriormente, aniquila o homem que tentou ajuda-los). Não há arrependimento. A única coisa que abala a criatura é o ato de não reconhecer-se perante o espelho. Esse primado da não identidade é o único motor para suas ações posteriores: a incapacidade de determinar seres, objetos, em suma, a matéria, é algo aterrorizante – esse será seu pesadelo, isso promoverá sua destruição.
Em seu filme de gangsters, Sexy Beast (2001), não interessava a Glazer o desenrolar do golpe, anunciado pelo emblemático e insistente personagem de Ben Kingsley, mas sim como o reticente Ray Winstone, e as pessoas ao seu redor, iriam lidar com essa enorme rocha que desabou inesperadamente no meio de suas vidas. As intrigas tradicionais de um filme do gênero são postas de lado, essa indeterminação perante a solicitação abruta para o golpe – perante a solicitação abrupta para se sair da quietude do cotidiano – é o que interessava ao filmar aqueles gangsters aposentados de Sexy Beast: suas dúvidas, hesitações e reações perante ao que parecia determinado, codificado por um gênero, mas de súbito sai da ordem esperada (algo metaforizado pela besta – encarnada num sonho logo no início e enterrada ao fim – uma presença que atua mesmo sem sabermos definir ao certo do que se trata efetivamente) . O mesmo movimento, de captar as reações perante uma incerteza, se instaura em Reencarnação (2004), o suspense que Glazer dirigiu após o filme de 2001: os planos mais fortes do filme advém da incapacidade de reagir, tanto da personagem de Nicole Kidman quanto do garoto, perante o assombro da suposta reencarnação (e mesmo uma suposta explicação racional nos sendo dada desde o início nos impede de descreditar a incompreensão perante a existência evidenciada por esses planos – vide a força da cena final na praia).
Não se trata de uma relação com o gênero mediada por uma hiperconsciência irônica e cínica, tal como em Lars Von Trier; ou seja, não se trata de uma desconstrução do filme de gangster, do suspense ou da ficção científica – como é o caso de Sob a Pele – a fim de se obter uma ideia de distanciamento que substitua a crítica pelo aplacar das consciências, a observação atenta do mundo pela fabricação de um olhar que se julga superior, elevado, para o qual até o acaso é dominado. Nos filmes de Glazer, muito pelo contrário, esses momentos de incerteza e incompreensão imperam: reina soberano esse primado da não identidade.
Em Sob a Pele ocorre a radicalização absoluta dessa ideia, não havendo quase enredo base para as decorrências em torno da mesma: a adoção da ficção científica – desde a abertura (que pela coreografia de suas formas remete ao clássico 2001 – Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick) quase abstrata até o personagem principal ser um alienígena encarnado em um humano – parece apenas reforçar essa impossibilidade de se determinar tudo, com as meras leis e conhecimentos terrenos. A mise en scène de Glazer se constrói com uma atenção extrema ao concreto, ao desenrolar dos seres no mundo, aliado a um esvaziamento extremo de qualquer explicação prévia: acompanhamos um motoqueiro vagando por uma estrada mal iluminada, retirando um corpo d’àgua, Johansson se vestindo (ou encarnando) com as roupas do defunto, vemos algumas luzes circundando o céu e, finalmente, Johansson saindo à caça. Posteriormente, já sabemos que a mecanicidade dessas ações será rompida pela dúvida que se instaura. Pouco se altera em relação à postura de Glazer: mantem-se esse ponto de vista quase mineral ao desenrolar das coisas.
Desse esvaziamento, desse ato de se despir de significações prévias, nasce o assombro perante a incapacidade de compreensão plena acerca do desenrolar dos fatos. Assombro reforçado pela modulação por parte da trilha musical, que ao preencher o silêncio desses seres, de seus olhares, durante sua passagem pelo mundo, reforça a ideia desse caminhar por uma linha tênue, desse risco permanente da existência. Ao ser consumido pela dúvida, ou seja, ao não poder mais habitar o ser que o abrigava superficialmente – e literalmente arranca-lo de si e olha-lo nos olhos – o alienígena (até então Johansson) é queimado vivo. A linha tênue – quase metálica na sua conjunção com a música – que ressoava a iminência de um fim inevitável, dá lugar a um silêncio no qual desfila uma tempestade de neve aparentemente no vazio : a linha se rompeu? Permanência do assombro, incompreensão da existência.
Guilherme Savioli
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