Ano VII

Dia II – Em que lugar estou? (Zanj Revolution, La Mia Classe)

domingo jun 1, 2014

 

 

Dia II – Em que lugar estou? (Zanj Revolution, La Mia Classe)

 

por Heitor Augusto

 

Ao final da  primeira entrada do diário escrito aqui do Olhar de Cinema, o Festival Internacional de Curitiba, eu disse: “Será mais interessante, porém, abordar Chantier A ao lado dos outros filmes argelinos aqui do Olhar de Cinema”. Mas a força do que se tenta fazer no argelino Zanj Revolution (Thwara zanj) torna inevitável que se inicie um comentário do segundo do dia do festival por um caminho que não seja o do filme de Tariq Teguia.

 

O que não significa que Zanj Revolution seja espetacular, por favor. É, sim, um filme que abre portas para uma conversa indispensável e o faz por caminhos cinematográficos também fortes. Caça-se fantasmas nesse filme: fantasmas de uma rebelião de escravos que aconteceu na segunda metade do século 7 no Iraque, hoje esquecida; fantasmas de um presente de insurgência na Argélia, quase invisível; fantasmas de homens de negócio para quem o capital não tem cor, nem religião, apenas aplicação prática.

 

A porta de entrada é um Battuta, um jornalista que, a partir de uma pista efêmera, tenta seguir os traços da rebelião Zanj, seu líder (derrotado) Ali ibn Muhammad e quais rastros desse passado nos faria entender o presente no Oriente Médio e olhar para as nações árabes como lugares de uma possível identidade compartilhada. Quanto mais o jornalista procura, mais ele se perde – princípio básico de qualquer filme genuíno sobre a busca do que não se vê.

 

Teguia trabalha num tom ora fabular, ora alegórico. No princípio, os jovens que transpiram angústia e correm da polícia argelina nos fazem lembrar imediatamente dos artistas-guerrilheiros de Os Residentes, o filme de Tiago Mata Machado que emplodiu a crítica brasileira em 2010. Mais a frente, as preocupações dos personagens que cruzam o caminho do jornalista (os americanos preocupados em fazer mais dinheiro com a “reestruturação” do Iraque, a moça palestina que tenta entender que lugar na História ela ocupa etc) se mostram próximas às de Norte, o Fim da História, mais recente filme do filipino Lav Diaz, homenageado na Mostra de Cinema ano passado.

 

Mas justamente por trabalhar entre a fábula e algum realismo, construindo sentidos por meio de comparações ou imagens que existem para dar sentido a outras ideias além daquelas mesmas palpáveis, tentando trafegar na crença ao arquétipo e na sua desconstrução pela ironia é que Zanj Revolution é um projeto que ora dá muito certo (o que dizer da cena fantasiosa do terceiro mundo roubando o dinheiro dos homens de negócio como se estivessem num filme de aventura de Hollywood para satisfazer fantsias próprias?), ora vaga por aí sem força, irregular, segurando-se apenas pelas imagens bonitas ou pelo interesse do assunto.

 

No meio de um festival, e ainda mais com o corpo maltratado por uma noite de sono em que o sono simplesmente não apareceu, é inevitável equivocar-se no julgamento (cada sessão é uma experiência única). Fico, por ora, com a sensação de que Zanj Revolution é muito interessante, ainda que não consiga ser inteiramente bom.

 

Como é duro ser europeu

 

Numa definição pejorativa, pode-se dizer que La Mia Classe (My Class) é um subproduto de Entre os Muros da Escola, filme de Laurent Cantet que ganhou Cannes em 2008. Se quisermos continuar na ladeira das definições pouco elogiosas, podemos até apontar que a dramaturgia que o diretor Daniele Gaglianone almeja não faz nem sombra para O Céu Sobre os Ombros

 

A imigração e as relações trabalho, centro e periferia movem o filme, que tenta fazer-se por meio de uma linguagem híbrida (aliás, como há filmes híbridos neste festival). Um ator interpreta um professor que ensina italiano para imigrantes de vários países, estes reinterpretando suas próprias histórias. O fantasma de não ter trabalho e perder o visto de resistência ronda o filme – enquanto os imigrantes estiverem no filme, ou seja, trabalhando, manter-se-ão na Itália.

 

Um filme evidentemente nobre na causa (o conservadorismo, avesso à imigração especialmente africana, é feroz na Europa), mas bastante cômodo. Qualquer filme sobre esse tema, penso, deve imediatamente colocar em ameaça a posição de quem cria o experimento e de quem o controla – o cineasta, branco e europeu. Não fazê-lo é apenas perpetuar um sentimento de culpa quase acalentador (“como é complicado meu lugar na relação centro-periferia, mas como estou consciente dele, logo posso colocar a cabeça no cabeceiro”). 

 

O Invasor, do belga Nicolas Provost, já avançou nisso, ao lidar não só com a consciência do lugar que se ocupa na relação, mas ameaçando esse próprio lugar. O mesmo para Minha Terra, África, de Claire Denis, no qual se desmancha a fantasia de cordialidade – desde o começo, a personagem francesa é nada mais que “white material”, ou “carne branca”. 

 

Esse cinema bem intencionado, minimamente à esquerda, mas que não avança além do apontamento da conscientização e que deságua em culpabilidade, é estéril. Sem a ameaça (a quem controla o dispositivo e também ao espectador), no máximo saíremos da sessão, vamos comer uma pizza e dizer “como o mundo é injusto”.

 

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