Ano VII

De olhos bem abertos

sexta-feira mai 30, 2014

Dia I – De olhos bem abertos (The Second Game, Chantier A)

por Heitor Augusto

Dois filmes bons, ainda que longes de terem a força para permanecer por um longo período de tempo. Com propostas bastante distintas, todavia de desenvolvimento irregular (o primeiro, um híbrido de registro da realidade e sua encenação ficcional; o segundo, um filme que só se torna filme pela ação que acontece inteiramente fora do quadro). “Interessante” é um adjetivo que dá conta da experiência de assistir a esses dois longas no primeiro dia da programação do Olhar do Cinema.

No caso de The Second Game, que carrega a assinatura de Corneliu Porumboiu (não, isso não é necessariamente um elogio e sim, ele é o diretor de A Leste de Bucareste e Polícia, Adjetivo), o “interessante” divide espaço com o “insuportável”. Explico: no quadro, imagens na íntegra de um clássico entre Steaua e Dinamo, os dois maiores times da Romênia, ambos da capital Bucareste, jogado (“jogado” não é o termo certo, melhor seria “batalhado”, “brigado”) sob uma neve incessante que torna um mero carrinho um risco de vida; fora do quadro, a conversa entre o diretor e seu pai, Adrian, árbitro daquela partida ocorrida em 1988 – ou seja, ainda sob a liderança (opressora) de Nicolae Ceaușescu.

No quadro, uma tentativa de jogo; fora do quadro, o invisível: fala-se da História, da pressão sobre Adrian, o juiz, para ceder aos assédios tanto de Steaua (o time do Exército Vermelho) e Dinamo (o time da Polícia Secreta). Interessante porque existe a elaboração acerca de um país, de um momento, um contexto político a partir de uma mera partida de futebol que, no que é visto (novamente, o que está no quadro), não tem nada de especial. O mero fato de que a partida chegou ao fim, sem aparente favorecimento a nenhum dos lados, já é comemorável.

The Second Game (aliás, interessante é também o título, pois nos induz a pensar que se o primeiro jogo foi aquele que aconteceu em 88, o segundo é este que se passa em 2013, surgido do diálogo entre pai e filho, ou seja, o próprio filme) é um certo milagre: como Corneliu conseguiu fazer um filme, criar algo de cinema, com essas imagens velhas em VHS? Trazendo essa chave dentro/fora do quadro para o centro do filme e relacionando com o que é visto naquele contexto da política (país dentro da normalidade) e o invisível (o controle, a censura, a uniformização do pensamento).

Falei até aqui do que há de “interessante” nele. É preciso abordar também o “insuportável”: não é fácil assistir àquelas imagens, especialmente a partir do segundo tempo, quando os assuntos do diálogo entre pai e filho, que até então davam às imagens uma dimensão fílmica, tornam-se repetitivos, já não mais conseguem revelar e expor o invisível (a política, Ceaușescu, uma concepção de arbitragem que privilegia o fluxo do jogo à demonstração de comando, poder e punição – “por que dar amarelo? Por causa de uns empurrões?”).

Se no primeiro tempo The Second Game atraia porque mostrava o invisível, no segundo ele se torna um exercício de resistência: eu, espectador, vou mostrar para Adrian, o pai e juiz, que a despeito de seus questionamentos (“isso não dá um filme”, “ninguém se interessas por essas imagens velhas”), eu me interesso por elas, as imagens e o que as embala.

Mas isso – assistir apenas por um espírito de resistência – é pouco. Por isso mesmo, o filme desaba na parte final (ainda que o encerramento com Vivaldi lhe dê novamente uma dimensão para além da mundana).

Eu não sou daqui

É essa a questão principal do filme Chantier A e de Karim, seu personagem/protagonista/codiretor/elo de penetração numa teia de sentido e de afeto. Karim, argelino que migrou para a França há dez anos (hoje parece estar com vinte e tantos, talvez 26), volta para o seu país e para a família. Do começo ao fim do filme faz-se um caminho, tanto físico (já que ele viaja para além de Argel) quanto emocional. É justamente esse trajeto que mais interessa: do personagem que volta e idealiza o retorno e pensa ser posível pertencer novamente após um hiato à quebra do olhar inocente, que repentinamente se recorda os porquês que o levaram a escapar dali.

Será mais interessante, porém, abordar Chantier A ao lado dos outros filmes argelinos aqui do Olhar de Cinema (há ao menos outros dois), pensá-lo dentro das possibilidades de produção de um país instável nas políticas públicas de cinema e especialmente retomando a cobrança e a tensão da geração mais jovem, que hoje recebe um país fragmentado, com a mais velha (os libertadores da dominação francesa), questão central em Basta (Barakat, 2006). Volto a ele em algum texto próximo.

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