Ano VII

O Sabor da Melancia

quarta-feira mai 21, 2014

O Sabor da Melancia (Tian Bian Yi Duo Yun, 2005), de Tsai Ming-liang

Em O Sabor da Melancia, a vulgaridade surge como uma erupção vulcânica. O impassível fluir do tempo – rio que leva adiante a passagem dos segundos, minutos e horas por baixo da superfície estanque do plano fixo – a escorrer na primeira imagem do filme é rompido por uma visão insólita: uma mulher deitada na cama, com uma melancia no meio das pernas (bem abertas). Se antes a água podia representar a tristeza infinita, a meia cinza molhada dentro do calçado que faz squish squish o dia inteiro, agora é cor, é doce, é volúpia, é gula, é molhadinho. Eis o que está em jogo aqui: uma ressignificação radical dos signos da filmografia pregressa de Tsai.

A mais pungente dela envolve o signo do buraco, e se dá na sequência que encerra O Sabor da Melância: de um lado, Hsiao-Kang, transando com um corpo imóvel. Do outro, separados por uma parede,  Shiang-Shi, também imóvel, a observar através da janela (redonda, evidentemente). Decepção e paralisia – o homem, que ela não sabia até pouco tempo ser ator pornô, havia lhe negado sexo oral cenas antes – passam a dar, gradativamente, lugar a um crescente desejo, manifestado nos gemidos que escapam de Shiang-Shi. O tempo dilatado do plano nos leva ao inevitável clímax, em que os movimentos corporais de Hsiao-Kang são como o tremor que anunciam a explosão de um gêiser.  Surge então o ímpeto irracional, que faz o homem se levantar e correr até o buraco da janela para colocar o pênis na boca (o terceiro orifício utilizado na cena) de Shiang-Shi. A toda a vulgaridade das nádegas de Hsiao-Kang ocupando a tela, molhadas por gotas de suor, a se contrair em gozo, segue-se um contracampo chocante. Com o pênis inteiro na boca, a mulher limita-se a emitir sons, enquanto a câmera aguarda, pacientemente, lágrimas escorrem pelo rosto da atriz. A lágrima, uma constante no cinema de Tsai Ming Liang é, aqui, reconfigurada em mistério. Que sentimentos nela navegam ? É impossível saber (embora seja sempre possível recorrer a James Cameron: “o coração de uma mulher é um oceano de mistérios”). São poucos os minimalistas que conseguem, de fato, rearranjar os mesmos elementos e obter mais do que o novo. Obter o inimaginável.

Assim termina a comédia romântica de Tsai Ming Liang. Ou, aquilo que há de suas sombras, como na cena do jantar de caranguejos, em que se veem apenas as silhuetas dos personagens. A citação a Annie Hall tem pouco de homenagem e muito de reafirmação do caráter impalpável que a arte possui nos filmes do diretor. Tudo o que há de felicidade em Tsai acaba por ser um aspecto etéreo ou delirante. Meras sombras de esperanças.  Isso nunca muda.

Wellington Sari

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br