Reapresentando Tsai Ming Liang

Reapresentando Tsai Ming Liang

por Sérgio Alpendre

Alguns dilemas perpassam o pensamento sobre os filmes de Tsai Ming Liang. Tempo da contemplação ou fetiche dos planos longos? Cinema de composição dos planos ou video instalação? Estudo sobre a alma humana ou o humano como marionete? Todos esses clichês e alguns outros já foram empregados para descrever sua obra. O cineasta malaio teve um breve período de hype, entre 1994 e 2003, mais ou menos. Dez anos, iniciados com Vive L'Amour, seu segundo longa, e encerrados com Adeus Dragon Inn. Entre eles, três filmes igualmente celebrados que ajudaram a estabelecer uma reputação: O Rio (1997), O Buraco (1998) e Que Horas São Aí? (2001). E, de repente, a ruína crítica. O Sabor da Melancia (2005) causou profundo estranhamento entre cinéfilos que diziam amém para seu estilo peculiar. Em revisões, a balança pendeu para o lado favorável, mas o sinal de alerta foi ligado. Filme seguinte: Eu Não Quero Dormir Sozinho (2006). A impressão geral é de mais do mesmo. Ele teria voltado ao estilo que o consagrou, como se O Sabor da Melancia fosse um parêntesis em sua obra (mas como considerar O Buraco e Adeus Dragon Inn, então, senão como belíssimos e intensos parêntesis? – e, a meu ver, os dois melhores filmes de sua carreira). Peço emprestado as palavras de João Bénard da Costa sobre Fuga de Los Angeles (1996), a obra-prima incompreendida de John Carpenter, incluindo a citação dentro da citação:

Como escreveu Robert C. Cunbow em 1990: “The auteur theory is out of fashion today”. E o que era elogio há trinta anos (“os grandes autores fazem sempre o mesmo filme”) tornou-se em enxovalho. Nada pior do que ser predictable. Nada pior do que demonstrar um “estilo consistente e reconhecível”, uma “visão temática”. Nada pior do que fazer filmes que sejam parte de uma obra e em que o conhecimento da totalidade desta ajude à compreensão.

E é precisamente isso que acontece com Tsai Ming Liang: a melhor compreensão de uma obra sua depende de um conhecimento prévio de seus filmes anteriores. Dessa maneira é possível perceber, por exemplo, que em Eu Não Quero Dormir Sozinho os tempos de corte se antecipam, os planos duram sempre um pouco menos do esperado, enquanto em Cães Errantes acontece o contrário: a elasticidade, a radicalização da contemplação, e a própria contemplação dentro do filme (como já estava em Adeus Dragon Inn, principalmente), com Lee Kang Sheng observando a parede ilustrada que representa uma tela de cinema.

É possível acompanhar a progressão do quase mudo Hsiao-Kang, personagem de Lee Kang Sheng. De jovem viciado em jogos eletrônicos, que mora com os pais e prega uma barata à mesa com um compasso escolar (Rebeldes do Deus Neon)[1], ao morador de rua que negligencia os filhos (Cães Errantes), tendo ainda procurado emprego dos mais diversos: dublê de cinema (O Rio), ator pornô (O Sabor da Melancia), vendedor de relógios ambulante (Que Horas São Aí?), projecionista de um velho cinema (Adeus Dragon Inn –único no qual o ator não é protagonista), ou em andanças pela França (Visage) e por Kuala Lumpur (Eu Não Quero Dormir Sozinho). Ele se masturba ouvindo a transa do pai com uma amante e transa com o pai por acidente em O Rio. Torna-se, depois, um maldito, sem rumo, alcoólatra desiludido com a vida. Seria esse um julgamento moral de Tsai? Penso que não. É apenas a vida, que maltrata pessoas independentemente de suas ações.

A progressão, aliás, encontra eco na forma dos filmes. Rebeldes do Deus Neon é mais barulhento, pois reflete ainda a juventude, antes da perda gradual de esperança que é espelhada em diversos outros personagens, como a corretora de imóveis em Vive L'Amour, o pai de Hsiao-Kang em O Rio, a vizinha de O Buraco, a estrangeira em Paris de Que Horas São Aí?, o ator veterano de Adeus Dragon Inn, as mulheres de Cães Errantes. Rebeldes se parece mais com Prazeres Desconhecidos, que Jia Zhang-ke faria uma década depois, do que com os outros filmes de Tsai. Porque seus filmes foram tomados cada vez mais pelo silêncio, a não ser nos momentos musicais de O Buraco e O Sabor da Melancia – sugestão de rompantes otimistas do personagem?

Que Horas São Aí? inicia uma trilogia informal sobre a morte. Primeiro do pai, posteriormente, em Adeus Dragon Inn e Cães Errantes, do cinema. O cinema que agora (em Adeus Dragon Inn) abriga solitários em busca de encontros sexuais, gente que parece estar ali mais para comer do que para ver o filme, um turista japonês que foge da chuva, e dois atores veteranos que interpretam eles mesmos, os únicos interessados realmente pelo filme (também por terem atuado nele quando jovens – um deles, Tien Miao, é comumente visto, nos outros filmes, como o pai de Hsiao-Kang), os únicos a permanecer na sala do início ao fim. E onde está Hsiao-Kang, aliás, Lee Kang Sheng? Como vimos, é o projecionista. O mais solitário dos solitários, sem comunicação até mesmo com a encarregada da limpeza do cinema. É ele que projeta a última sessão do templo de cinema que vemos em franca decadência (iria fechar realmente logo depois da estreia de Adeus Dragon Inn). Em Cães Errantes só vemos ruínas. Simbolicamente, após a morte do cinema, o que resta aos personagens (um deles, vale lembrar, é Hsiao-Kang) senão observar um belo mural que emula uma tela de cinema widescreen e insiste em sobreviver em maio aos escombros?

Curiosamente, no mesmo ano em que Tsai dirigiu Adeus Dragon Inn, Tarantino realizou Kill Bill Vol. 1. Ambos são homenagens aos wuxia e aos Shaw Brothers (grande produtora de Hong Kong dos anos 60 e 70). Ambos reverberam personagens femininas: no filme de Tsai, o filme que se passa na tela é Dragon Inn, de King Hu (produção de Taiwan distribuida pelos Shaw Brothers), no qual vemos uma lutadora esgrimista; no de Tarantino, o japonês Lady Snowblood, de Toshiya Fujita, é uma das inúmeras referências. Enquanto Tarantino celebra o cinema oriental, Tsai lamenta seu ocaso.

Para onde ir após o mais desesperado e último de seus longas, Cães Errantes? Rumo à redenção? Ou à prometida aposentadoria?