O Buraco e a questão do afeto no cinema de Tsai Ming-liang
O Buraco e a questão do afeto no cinema de Tsai Ming Liang*
Por Cesar Zamberlan
Tsai Ming-Liang nasceu em 1957, em Kuching na Malásia, e com 20 anos saiu de lá para estudar cinema em Taiwan, mas Tsai não se considera nem malaio e nem taiwanês. Esse sentimento de não pertencimento a lugar algum, bastante próximo aos cineastas do pós-guerra europeu – penso, sobretudo, em como isso afeta os primeiros filmes de Wim Wenders, – ajuda, também, a entender o universo artístico criado por Tsai e, mais do que isso, é um dos pontos fundadores do seu trabalho e uma das possibilidades de ligar seu cinema à contemporaneidade, mas não a única, como veremos.
Tsai conheceu na faculdade em Taiwan um outro tipo de cinema: o cinema europeu, e se apaixonou por dois diretores que o marcariam enormemente: François Truffaut e Robert Bresson. Antes dos dois, tinha visto, e muito, o cinema norte-americano e filmes locais feitos à moda dos filmes norte-americanos. Ao conhecer os filmes destes dois franceses, bastante diferentes entre si, Tsai, que trabalha na TV e no teatro, começou a construir um universo cinematográfico particular.
De Truffaut, Tsai vai incorporar a ideia de um cinema no qual os personagens têm uma existência que extrapole a duração de um filme. A saga de Antoine Doinell, vivido por Jean Pierre Leaud, nos filmes de Truffaut, será modelo para os personagens vividos por Lee Kang-sheng. Tsai inclusive homenageará Leaud, convidando a participar de Que Horas São Aí? seu quinto filme. Além desta concepção, que vem de longe – pode-se pensar em Balzac e sua ideia do roman fleuve -, Tsai trabalha também em seus filmes, em certa medida apenas, a leveza do estar no mundo dos filmes de Truffaut, mas construindo essa leveza não a maneira Truffaut, e, sim, se aproximando do cinema rigoroso de Bresson.
Pode parecer estranho, paradoxal, inconciliável, pensar em filmes com personagens, de certa forma leves no seu estar no mundo, construídos com o estilo rigoroso bressoniano e seu anti-cinema, fundado em noções formais dogmáticas, vide os aforismo programáticos de Notas Sobre o Cinematógrafo, livro chave para entender a formulação de cinema desenvolvida por Bresson. Mas Tsai vai unir essas duas heranças e atualiza-las à sua realidade, compondo um texto filme extremamente rico e autoral. Tal texto vai começar a ganhar corpo com o seu segundo filme: Vive L'Amour, premiado com o Leão de Ouro, melhor filme, no Festival de Veneza em 1994. Antes, Tsai fez Rebeldes do Deus Neon, mas neste ainda não temos o universo que Tsai construirá depois e, no lugar dos elementos que trataremos a seguir, o que temos é um cinema mais convencional, com uma decupagem mais dinâmica sem a contrastarmos com os longos planos que o caracterizariam depois, com uma musiquinha melosa que aparece em boa parte do filme no lugar do silêncio que será a tônica nos filmes seguintes e, sobretudo, com uma visão de mundo menos desencantada, ou seja, um Tsai que ainda acreditava na possibilidade dos humanos encontrarem afeto e solidariedade na família, nos amigos e no seu entorno.
Será justamente esse desencantamento com o mundo e com o espaço urbano, mote do cinema de Tsai nos oito filmes seguintes, ou, em outros termos, a impossibilidade de encontrar afeto num mesmo espaço tempo num mundo caótico ou tomado pela peste moderna, o ponto principal de contato entre o cinema de Tsai e a contemporaneidade, e a questão central a ser tratada neste ensaio.
A afecção e infecção
Espinosa entendia por afeto as afecções do corpo, a alegria potencializadora da vida dada pelo bom encontro, o que ele chama de occursus. A potência de agir seria então aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, por estes encontros ou afetos. E se alegria seria o sentimento experimentado quando a potência de agir aumenta; a tristeza seria o efeito de um encontro que diminui tal potência.
A definição, colocada aqui de forma rasteira, nos ajuda a entender o cinema de Tsai, fundado na impossibilidade deste afeto, algo que já aparece em Vive L'Amour, o seu premiado segundo filme no qual três personagens, May Lin, Ah-Jung e Hsiao-Kang, personagem de Lee Kang-Sheng, dividindo um apartamento sem se dar conta de que vivem “juntos” e no qual o automatismo das ações do mundo moderno se contrapõe à possibilidade do verdadeiro encontro. Vazio que culminará em um dos finais mais fortes da história do cinema com, May Lin, a corretora de imóveis vivida por Yang Kuei-Mei, atriz que trabalhará com Tsai em vários outros filmes, chorando, sentada em um banco de praça, sob o registro complacente da câmera fixa, numa sequência que dura cerca de dez minutos.
No filme seguinte, O Rio, Tsai opõe essa impossibilidade de afeto, a afeição ou afecção, àquilo que chamo de infeção, até para fazer um paralelo entre os termos próximos. No filme, Urso de Prata no Festival de Berlim, Xao-Kang (Lee Kang-Sheng) acaba aceitando fazer figuração em um filme e entra num rio poluído para representar um morto. O batismo às avessas, como bem o definiu Tatiana Monassa, no catálogo da mostra sobre o diretor realizado no Centro Cultural Banco do Brasil em 2010, acaba fazendo com que um corpo estranho penetre no corpo do personagem, praticamente o imobilizando, limitando a potência de Xao e sua mobilidade. Este estranho encontro, entre tantos outros do filme, como na cena em que Xao se relaciona sexualmente com um homem numa sauna escura sem saber que este homem é o seu pai, mostra de forma cruel a dificuldade ou até mesmo impossibilidade destes encontros positivos, alegres, num território que não seja o território do fortuito e do imponderado, como veremos mais detidamente em O Buraco.
O Buraco
O Buraco foi feito para compor a série 2000 visto por do canal francês Arte. O filme exibido no Festival de Cannes de 1998 acabou ficando com o Prêmio da Crítica Internacional. E nele, Tsai condensa os temas que vimos até aqui.
Ainda com a tela escura, ouvimos sons altos de sirene, e depois, ainda com a tela escura, ouvimos depoimentos de moradores questionando as ações do governo que vai suspender a coleta de lixo e está abandonando os moradores devido a uma epidemia que se alastra pela cidade. Um morador afirma que deveriam queimá-los junto com o lixo. A locutora do programa, por sua vez, informa que ainda não foi possível determinar o nome da epidemia, e nem a sua origem. Ela chama depois, ainda com a tela escura, um informe da Companhia de Água que anuncia que à meia noite do dia 1 de janeiro de 2000 cortará a água em zonas de quarentena, pedindo aos moradores que saiam dessas áreas porque seria estúpido viver da água da chuva. A locutora volta e anuncia: “sete dias a partir de hoje até o ano 2000”.
Feito o preâmbulo, contextualizada a situação, a primeira imagem é do personagem de Lee Kang-Sheng levantando-se do sofá depois de ouvir a campainha, ao som intermitente da chuva e colocando a mão no pescoço, ligação com o filme anterior O Rio. Lee ou o morador do andar de cima, como ele será nomeado no filme, é um dos habitantes que se recusa a deixar a área de quarentena. A campainha anuncia a chegada de um encanador que procura um vazamento que está jogando água no andar de baixo, para tentar resolver a questão, o encanador faz um buraco no chão do apartamento e acaba criando um canal de comunicação entre o andar de cima e o andar de baixo: o buraco do título.
A mulher do andar de baixo é Yang Kuei-Mei, outra que se recusa a deixar a área. A relação dela com o vizinho só ocorrerá à medida que, do buraco aberto entre os apartamentos for notado, e ele é notado, primeiramente, quando ela, aterrorizada percebe uma barata saindo do apartamento do vizinho e descendo ao seu. Este é o primeiro encontro, o primeiro contato e logo depois dele, Tsai, quebra o filme com uma outra marca sua, aqui usada pela primeira vez: os números musicais ao estilo Grace Chang, sucesso da música popular chinesa.
O recurso, que causa enorme estranheza, rompe com a narrativa seca, apesar da chuva intermitente que ouvimos, marcado pela rigidez dos planos fixos, nenhum diálogo até então e pouca ação, para a apresentação do primeiro números musical protagonizado pela personagem feminina, dentro de um registro cinematográfico outro, cheio de cores, luzes e com um visual típico de tal encenação para, fechando levemente a íris num fade-out ,voltar à história dos dois moradores. Tsai vai então alternar em outros momentos os dois registros, o drama sério e agônico dos personagens com esses musicais que remetem a uma outra dimensão, à esfera da fantasia, do imaginário, mas não partindo dos personagens, pois não temos uma indicação clara nesse sentido, imaginário talvez do diretor, brincando com a realidade fílmica e rompendo com a transparência ao mostrar que aquilo é um filme, mera fabulação.
Voltando ao canal de contato entre os dois moradores, ele voltará a ser acionado quando o morador do andar de cima volta bêbado para casa e vomita no buraco. Corte seco e vemos a moradora de baixo olhando para o liquido que escorre na sua sala, pondo a mão nele até se certificar do que se trata.
A partir de então, o filme registrará ora um, ora outro, no apartamento e no conjunto residencial abandonado em que moram. Conjunto que conta ainda com a presença de um gato, de um velho fantasma (o mesmo ator que faz o pai em O Rio), de um garoto talvez fantasma que anda de bicicleta e de um ou outro morador que na iminência de serem contaminados pela epidemia serão retirados do local pelas autoridades policiais.
Isolados, o homem do andar de cima e a mulher do andar de baixo terão apenas a si como contato humano e o buraco como canal de comunicação. Quando se entreveem no prédio, Tsai sempre mostra que estão em planos separados, ou seja, um acima do outro, nunca num mesmo plano. A ideia, magistralmente elaborada pela mis én scéne é a da verticalização das relações humanas, da impossibilidade de afeto, como venho defendo aqui, num mesmo espaço. Quando se encontram na venda, que ele mantém aberta, apesar de não haver mais ninguém morando na área, o contato é ríspido, visando a finalização do conserto do vazamento, o que, consequentemente, taparia o buraco.
Mas Tsai, como em O Rio, vai contrapor o afeto, afecção, à infecção. E o encontro entre os moradores, o occursus no sentido espinosiano, vai ocorrer justamente quando a moradora do andar de baixo apresenta os primeiros sinais da doença. Nesse momento, o personagem de Lee Kang-Sheng vai, desesperadamente, tentar alargar o buraco entre os dois para salvá-la. Vai tentar içá-la ao seu andar, numa imagem que remete ao afresco “A Criação de Adão” de Michelangelo no teto da capela Sistina, mas, como no “batismo” de O Rio, ganhando um sentido contrário ao sentido bíblico da criação visto que a personagem está morrendo e contrário ao movimento uterino do nascimento, outra metáfora bastante usada para compreender o filme. De qualquer forma, o primeiro contato real, do toque, carnal, ocorrerá, portanto, quando ele a puxa para o andar de cima.
Muito analisam esse final como um dos poucos finais felizes dos filmes de Tsai, até porque na sequência da cena do içamento temos um musical com os dois dançando apaixonados. No entanto, uma leitura detida na posição de câmera do plano final revela que quando ele a puxa, a câmera não os acompanha. Vemos toda a ação pelo andar de baixo, e em nenhum momento pelo andar de cima para vermos o que ocorre quando estão no mesmo plano. A câmera de Tsai, portanto, não nos revela a união, o encontro fica apenas sugerido. Quanto à dança final, como todos os outros números musicais do filme, eles pertencem a outro universo narrativo, a outra dimensão simbólica.
Tsai consegue, desta forma, a proeza de unir os dois discursos: o discurso crítico da impossibilidade de afeto, algo que é extremamente contemporâneo, com o discurso que projeta sobre o real uma luz ou o véu de fantasia, igualmente contemporâneo. E da união destes dois discursos, fragmentados e não complementares, deixa em aberto a situação dos personagens entre a afecção e a infecção, o encontro e o desencontro[1].
* Publicado originariamente no livro Cinema e Contemporaneidade, organizado por Rogério Almeida, como parte dos trabalhos do GEIFEC (Grupo de Estudos do Itinerário de Formação em Educação e Cultura) da Faculdade de Educação da USP, publicado pela Editora Képos.
[1] Cabe lembrar que no seu filme seguinte, Que horas são aí?, o personagem de Lee Kang Sheng, um vendedor de relógios, se apaixona por uma cliente que se muda para a França e para estar com ela, para manter o afeto, ele passa a alterar todos os relógios que encontra em Taipei para estar no mesmo tempo que ela.
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