Ano VII

Baldes de Chuva

quarta-feira mai 21, 2014

 

Life is sad

Life is a bust

All ya can do is do what you must

You do what you must do and ya do it well

                                               Bob Dylan, Buckets of Rain

 

Baldes de Chuva

por Bruno Cursini

Lee Kang-sheng e Tsai Ming-liang estabeleceram uma ligação quase sem precedente na história do cinema. Longe de terem sido os únicos a formarem uma parceria ator/diretor, que faz com que a menção de um nos leve a outro, difícil lembrar de qualquer intérprete que esteve em todos os trabalhos de determinado cineasta e, simultaneamente, não tenha apenas lhe servido de alterego – talvez aquelas que tenham mais se aproximado disso sejam a turbulenta parceria entre Werner Herzog e Klaus Kinski (apesar dessa não se repetir por toda a filmografia do diretor), além de, claro, Leos Carax e Denis Lavant, nas quais os intérpretes parecem lapidar o material fílmico com uma força quase tão grande quanto a dos próprios realizadores.

A história entre ambos é conhecida e é normalmente lembrada em resenhas sobre algum título do diretor malaio. Mais intrigante do que a anedota é a noção de que, segundo o próprio diretor, em sucessivas entrevistas ao longo de sua carreira, o modo lento de Kang-sheng se mover e falar, enfim, sua corporeidade e pouca expressividade facial, forçaram o cineasta a moldar sua visão de mundo a ele. Ou seja (baseado em declarações deste tipo e entendendo poder haver aqui um exagero), muito do que damos por formalismo de Ming-liang seria sua maneira (a única) de registrar seu ator. Até que ponto tal sugestão seja factual, nunca saberemos, mas se essa impossibilidade imaginativa existe, é em decorrência da impossibilidade de olharmos à filmografia de um e não ver, intrinsecamente, o rosto de outro. As questões são: O que é este rosto? O que ele nos diz? De onde ele vem?

Dentre essas perguntas, interessa-me, particularmente, a última, mesmo uma das possíveis respostas sendo conhecida à medida de sua obviedade: Buster Keaton. Se podemos encontrar facilmente, em Ming-liang, ecos de Robert Bresson (na disponibilidade corporal não-psicológica de seus personagens), Michelangelo Antonioni (especialmente aquele de O Eclípse e O Deserto Vermelho – seus melhores filmes – nos quais a arquitetura e o urbanismo parecem alterar as psiques de todos neles incluídos, isolando-os uns dos outros) ou, ainda, num plano mais temático, Rainer Werner Fassbinder (na trato à crueldade e no processo nefasto da quebra do individualismo frente a acontecimentos alheios) é antes, sob o signo do cômico silencioso, que percebemos a tendência do cineasta em criar gags visuais de uma calmaria hilária, além de uma certa tipificação dos personagens, em especial a de Kang-sheng, Hsiao-Kang.  

Como os personagens de Keaton, aqueles compostos por Kang-sheng jamais nos suplicam à simpatia. Suas ações normalmente respondem a um único objetivo e este, usualmente, a uma situação. Em Keaton, normalmente encontramos um tipo frágil, pequenino mas estoico, carente de maiores interesses e subjetividades. Após apaixonar-se (por uma garota, na maioria dos casos, mas também por uma vaca, naquele que talvez seja seu longa-metragem mais engraçado, Vaqueiro Avacalhado), ele será levado, a esmo, pelos acontecimentos, a provar-se digno de seu amor. Seu personagem é um homem sério, honesto, distante do vagabundo de Charles Chaplin (voltando ao filme acima mencionado, lá pelo final, durante um jogo de cartas no qual todo seu salário é colocado na mesa para, quem sabe, ele conseguir o suficiente para adquirir a quadrúpede, ele conta com a sorte e é trapaceado, numa situação que podemos imaginar tranquilamente Chaplin sendo o autor da tramoia, e não a vítima). Em Kang-sheng, dificilmente suas motivações são tão claras (o que o põe a seguir o casal em Rebeldes do Deus Neon? Tédio? Compulsão? Curiosidade?) e a paixão é substituída, constantemente, pela obsessão. Em comum entre os personagens, no entanto, e para além da tão divulgada (e suposta) falta de expressividade facial, temos um homem que jamais parece parar para refletir as razões pelas quais determinada situação lhe fora imposta, mas irá tentar fazer o que der, da melhor maneira possível para suplantá-la: em uma das primeiras cenas em Visage, onde a torneira de uma pia se quebra e, de tão banal situação, uma inundação se faz presente, vemos Kang-sheng não se abater, tentando, do melhor modo, pura e simplesmente, acabar com aquilo.

Em meio a tantas ações prosaicas, os filmes de Ming-liang são famosos por seus surtos surrealistas e tragicômicos (surgidos sem anúncios, de repente), algo que, junto às gags que se formam sem bem nos darmos conta, o distancia de muitos cineastas que, no limite, apontam à, basicamente, mesma coisa que ele; ou seja, a falência dos laços afetivos – familiares, passionais – num ambiente surdamente opressor. É evidente que muito da comédia muda se ancora em elementos hoje dito cartunescos, mas mesmo em tal cenário os filmes de Keaton se destacavam por suas situações absurdas, ganhando a estima de Salvador Dali e Luis Buñuel – ao nos depararmos com os planos embaixo d’água em Marinheiro por Descuido, por exemplo, quando Keaton pratica esgrima contra um peixe-espada utilizando-se de outro peixe-espada, não no resta muita dúvida do porquê de tal admiração.

Ainda nesta mesma obra-prima (espécie de ensaio – mas jamais inferior – para A General), acompanhamos um corre-corre típico das comédias do período, onde dois personagens tentam encontrar (ou fugir) do outro. No caso, trata-se do momento em que Keaton descobre estar com uma outra pessoa (e somente uma) na embarcação – uma revelação similar àquela de O Buraco, quando a presença da outra pessoa altera o que parecia estar fadado ao pleno isolamento. Tal exploração do espaço e jogo, por vezes involuntário, de esconde-esconde, compõem a tônica de Vive L’Amour, aqui sendo àquela do desencontro mas, pela mera sugestão do contato com o outro, também de alguma possibilidade de conexão, como no instante no qual Kang-sheng ensaia um suicídio mas, ao escutar gemidos no quarto vizinho (que ele julgava vazio), vai bisbilhotar os amantes. Após confirmar o ato, sai na miúda, pressionando seu pulso já cortado. No mesmo filme, temos a famosa cena de um dos ménage à trois mais doentes do cinema, com Kang-sheng masturbando-se embaixo da cama, desapercebido, enquanto o casal transa sobre seu corpo.

Nos dois casos existe uma constante busca pelo contato físico e algo que os impede disso: qualquer coisa como um deboche do destino. Podemos falar da famigerada incomunicabilidade (em Keaton, literalmente sentida em Sete Oportunidades, onde uma simples frase que o personagem fora incapaz de dizer desencadeia toda a confusão) ou, melhor, do embaraço de nos fazermos relacionar. Há, igualmente, um olhar pessimista ao presente (“age of speed, need and greed”, segundo As Três Idades), que tornará Kang-sheng ora em uma espécie de flâneur, ora em ermitão cosmopolita. Sobretudo, apresenta-se o problema da figura paterna – ou algum homem física e/ou economicamente mais forte. Daí que, muitas vezes, surgem as seguidas competições no comediante americano (Box por AmorMarinheiro de Encomenda) e, em Tsai, o afastamento tácito da família, talvez com O Rio constituindo sua melhor ilustração, com o pai e a mãe tentando cuidar do jovem, com o primeiro viajando com o filho, e a mãe, naquela que talvez corresponda a melhor gag da carreira do cineasta, lhe emprestando seu vibrador para o rapaz massagear o pescoço. O que poderiam surgir como atos de zelo, surgem travestidos de obrigações: o pai enervado, na garupa, segurando a cabeça do filho que conduz sua moto; a mãe entediada vendo pornografia sem ter com o que (perdoe-me o termo) se consolar.

Os papeis de Lee Kang-sheng são usualmente aqueles de alguém um tanto ilógico, cujas ações são apenas a resposta a um mundo alheio, e suas motivações são simples (quando, de fato, as temos) a ponto de não encontrarmos cinismo mesmo quando é o que parece, à primeira vista. Lembremos de uma cena em Rebeldes do Deus Neon, quando ele espia o namorado da garota vendo o estrago que ele fez em sua moto. Sua alegria é infantil, para não dizer bestial. São estas suas mesmas obstinação e seriedade que encontramos presentes nos momentos mais insólitos, e o início de O Sabor da Melancia não nos deixa enganar. Quem mais poderia realizar tal tarefa com tamanho empenho e devoção? Buster Keaton, evidentemente, o maior de todos os melancólicos românticos.

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