Ano VII

DVD 2014 – vol. 1

sábado abr 26, 2014

DVDS JANEIRO/ABRIL 2014

Finalmente reestreia a seção de lançamentos em DVD (ou Blu-ray, vale dizer), totalmente modificada. De periodicidade variável (pode ser bimestral, trimestral ou quadrimestral), passaremos por alguns lançamentos em home video que julgamos essenciais em qualquer filmoteca.

Aqui só teremos indicações, inicialmente assinadas por mim (e, portanto, que refletem o meu gosto e minha visão de cinema, não necessariamente a visão da revista), futuramente também por outros colaboradores (e, no caso, a indicação passa a ser deles).

São pequenos textos que visam dar conta, na medida do possível, de uma parte dos bons e ótimos lançamentos que temos a cada mês. (SA)

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(os textos marcados com * foram publicados anteriormente na Guia Folha [livros, discos, filmes], e são republicados aqui, às vezes com modificações)

Textos de Sérgio Alpendre

 

OS 47 RONIN (coleção)

A Vingança dos 47 Ronin (Genroku Chushingura, 1941), de Kenji Mizoguchi

Os 47 Ronin (Chushingura, 1958), de Kunio Watanabe

Os Vingadores (Chushingura, 1962), de Hiroshi Inagaki

Kenji Mizoguchi nunca realizou um filme sequer em scope, embora se soubesse que ele era entusiasta do formato. Infelizmente, Nosso Senhor morreu antes que o Japão produzisse seu primeiro filme super retangular. Mikio Naruse, por outro lado, diretor mais discreto e tido equivocadamente como sem estilo, adotou o scope a partir de 1957 e brilhou como poucos no uso do espaço horizontal. O fato é que perdemos a possibilidade de ver o que Mizoguchi faria em scope, e não há motivo para acreditar que fosse algo menor do que seu trabalho com as cores (em dois únicos filmes de 1955). O scope, em todo caso, está presente em A Vingança dos 47 Ronin (1942), como já estava em Conto dos Crisântemos Tardios (1939). Há um trabalho horizontal fascinante, pensado nos movimentos de câmera e nas panorâmicas, e há sobretudo um recorte geométrico da imagem que privilegia as camadas horizontais na dramaturgia. Em Conto dos Crisântemos Tardios a operação é mais clara, já que os limites da ribalta criam naturalmente o retângulo do scope. Em A Vingança dos 47 Ronin, há o duplo scope no momento do seppuku de Lorde Asano, por exemplo. O filme é grandioso, e Mizoguchi usa a grua de maneira incisiva, criando também algumas verticalizações no meio das horizontalidades com que trabalha (e o duplo scope acima mencionado é alcançado justamente com o movimento da grua.

Os outros dois filmes presentes na coleção, Os 47 Ronin (1958), de Kunio Watanabe, e Os Vingadores (1962), de Hiroshi Inagaki, são rodados efetivamente em scope, e em cores. Apesar disso, parecem menores, menos horizontais e menos vivos do que o filme de Mizoguchi, graças à perfeição com que este último perscruta o espaço da encenação. Que não se deixem enganar por minhas palavras: são duas belíssimas aventuras a de Inagaki e Watanabe, daquelas para se ver e rever. É que na companhia de Mizoguchi, esses dois ótimos diretores, pobres coitados, parecem simples mortais ladeando uma entidade suprema.

Assim Estava Escrito (The Bad and the Beautiful, 1952), de Vincente Minnelli

O filme com o qual Minnelli entra de vez no melodrama, após uma experiência frustrada com Undercurrent, de 1946. Kirk Douglas é o produtor odiado e incompreendido por aqueles que devem a carreira, de certa forma, a ele. À maneira de Cidadão Kane, vamos conhecendo o envolvimento dele com três desses profissionais: um diretor, uma atriz e um roteirista. A cena que resume a louvação de Minnelli ao cinema clássico americano é aquela em que o diretor europeu responde ao produtor Douglas, que queria cada cena filmada como se fosse uma obra-prima, mais ou menos assim: "um filme é como um colar de pérolas; se cada cena for uma pérola, e não tivermos o cordão para amarrá-las, não há colar, ou seja, não há filme". Minnelli constrói seu colar de pérolas com a habilidade de um mestre, e ergue uma bela homenagem à figura do produtor (que faz do que pode para que um filme nasça), ao sistema de estúdios (responsável, em última instância, pela era de ouro de Hollywood) e aos profissionais que nele trabalham. Apesar disso tudo, o tom romântico não consegue esconder uma crítica ao rolo compressor que se faz no espírito humano em nome de uma obra de arte. Como sempre, em Minnelli, nada é tão simples como parece.

* Cidade das Ilusões (Fat City, 1972), de John Huston

Talvez por tratar de um assunto que lhe era próximo, o boxe, talvez por respirar os ares férteis da Nova Hollywood de Coppola e Dennis Hopper, John Huston faz, com Cidade das Ilusões, de 1972, aquele que pode ser considerado seu melhor filme. Em uma carreira que atravessou cinco décadas, entre as de 1940 e 1980, é um feito e tanto.

São dois protagonistas. Stacey Keach interpreta um lutador veterano, alcoólatra e fracassado, que resolve treinar depois de um ano e logo sofre uma distenção muscular. Vive em bares, onde encontra gente igualmente decadente. Jeff Bridges é o novato talentoso que espera uma chance para brilhar no ringue. Na primeira luta, quebra o nariz, na segunda, mal vê a cor do caminhão. Nada indica que fará grande carreira no boxe.

É a história dos perdidos, dos estilhaços de uma nação em franca decadência moral pelo fracasso no Vietnã. Uma América dividida e enfraquecida, como os personagens deste filme doloroso e incrivelmente belo.

O Colecionador (The Collector, 1965), de William Wyler

O personagem de Terence Stamp ganha na loteria. Muda de classe financeiramente, mas não espiritualmente. É o que ele tenta comprar em O Colecionador. Primeiro com o hobby de colecionar borboletas. Depois aprisionando uma moça descolada (Samantha Eggar), e obrigando-a a se apaixonar por ele. Vira um jovem mimado que pensa tudo poder por ter enriquecido.

O filme se insere perfeitamente no momento de modernização e europeização de Hollywood, após o colapso do sistema de estúdios e o sucesso do cinema moderno europeu nos EUA. Era uma época em que o terreno da Nova Hollywood estava sendo gestado pelos estudantes que tomariam o trono por alguns anos. Wyler, diretor que simbolizava muito bem a era dos estúdios, sai-se muito bem na empreitada, e deve muito do sucesso de seu filme à interpretação de Terence Stamp, que logo depois faria Teorema, de Pasolini.

Notem como os recortes geométricos nos planos são mais evidentes, assim como os enquadramentos, que já eram rebuscados em filmes como A Carta e Pérfida, tornam-se um pouco mais chamativos. Ainda assim, Wyler está um passo atrás, em matéria de audácia, dos diretores que promoviam uma mudança nos ares Hollywoodianos, sobretudo Aldrich, Arthur Penn e Samuel Fuller.

Com a Maldade na Alma (Hush… Hush… Sweet Charlotte, 1964), de Robert Aldrich

Robert Aldrich explorou os limites do Código Hays no inusitado e brilhante Com a Maldade na Alma, de 1964, um de seus filmes mais maneiristas. Ele reprisa e melhora a parceria com Bette Davis, após o sucesso de O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (1962). Há uma cena de violência que, por seu ineditismo, ao menos em filmes maiores , é de certa maneira um marco da representação da violência no cinema americano, à altura do muito estudado Psicose (1960), de Hitchcock. Em Com a Maldade na Alma, a mão do personagem de Bruce Dern é decepada por uma mulher furiosa. Vemos claramente o braço sem a mão sendo colocado à frente do rosto que grita de dor, e o sangue que espirra na estátua em seguida sugere que a violência sonegada (pois o corte nos deixa imaginando o que se passa no extra-campo) é ainda pior. Com os créditos que surgem após poucos minutos, ficamos sabendo que sua cabeça também teria sido decepada. A imagem completa do homem sem mão e cabeça voltará adiante no filme, sob a forma de uma assombração fictícia para assustar a personagem de Bette Davis.

* A Dama Oculta (The Lady Vanishes, 1938), de Alfred Hitchcock

Após Jovem e Inocente, a maior obra de sua fase inglesa, Hitchcock realiza A Dama Oculta, agradável brincadeira sobre uma simpática senhora que, durante uma passagem por um túnel, simplesmente desaparece da vista de todos. E é como se ninguém tivesse visto ela ali. Situação ideal para o diretor exercitar o seu estilo particular – mesclando suspense e humor – à esta altura em pleno desenvolvimento.

Quem é essa senhora? Teria a jovem que a acompanhava sofrido uma alucinação? Por que todos, caso contrário, estariam mentindo? Com algumas pistas falsas e uma boa dose de ironia, Hitchcock vai traçando o destino dos personagens de maneira farsesca, como se desse uma grande banana para os "senhores verossímeis" (como ele chamava os que exigiam mais veracidade em suas tramas).

Depois de A Dama Oculta, Hitchcock realizaria uma última obra inglesa, A Estalagem Maldita, antes de embarcar para Hollywood e se consolidar como um dos grandes gênios do cinema.

* A Grande Guerra (La Grande Guerra, 1959), de Mario Monicelli

Mario Monicelli, um dos mestres da comédia cinematográfica italiana, faz aqui um filme de guerra, em preto e branco e cinemascope, com um elenco de primeira encabeçado por Alberto Sordi, Vittorio Gassman e Silvana Mangano.

Mas seria mesmo um filme de guerra? Não é preciso limitar dentro de um gênero específico uma obra que, como muitas outras desse período de ouro do cinema na Itália, tem um pouco de tudo: drama, comédia, ação, tragédia, em suma, porções generosas de vida.

Giovanni e Oreste passam pelo recrutamento e são mandados para o front, durante a Primeira Guerra Mundial. Uma vez lá, tentam sobreviver e manter a humanidade com o jogo de cintura que se espera de personagens interpretados por Gassman e Sordi. Mas a guerra não poupa ninguém.

Premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1959, o filme é mesmo ótimo, mas a Cult Classic cometeu o desserviço de lançar numa cópia ruim, sem definição e com o formato errado. É um desrespeito com o grande Monicelli.

O Grito das Selvas (The Call of the Wild, 1935), de William A. Wellman

O marido de Loretta Young desapareceu há dois dias, e agora é tido como morto. Ela está numa selva a caminho do ouro no Alaska, com Clark Gable, garanhão, macho dominador. Ela faz carícia no grande cão Buck, adestrado por Gable e herói de muitas aventuras. Ele acaricia a mão dela, aproveitando-se da proximidade com o cão. Ela tira a mão, constrangida, e um pouco tocada pela investida do homem. O amigo em comum, Shorty, avisa que vai deitar e dormir, ali, ao lado deles, mas não mais vigilante dos flertes dissimulados ou diretos. Ela, então, se deita, virada para o céu noturno. Abre um pouco a blusa de cima, deixando à mostra, pela curva do tecido da blusa de baixo, seus mamilos. O filme é O Grito das Selvas, de 1935, Código Hays rolando solto. Gable observa a cena, e não é só ele quem está babando, mas também o cão ao seu lado. Gable baba internamente, pois anda sobre duas patas. Toda essa cena de jogo e sedução é um daqueles mistérios que aconteciam aos montes no cinema clássico americano e hoje está cada vez mais raro. Como se filma isso? Que dimensão de conhecimento humano, psicanalítico e da natureza de homens e mulheres é necessário para chegar a uma cena assim? O diretor é William A. Wellman, raramente tido como gênio, e no entanto fez o genial Consciências Mortas.

No mais, tenho pensado bastante ultimamente, e sempre chego à mesma conclusão: poucas coisas são mais modernas que o cinema clássico americano nos anos 1930. Época de experimentação (com os limites sexuais sob censura, com a luz dos expressionistas, com o que o público poderia captar no recém-chegado cinema sonoro).

O Ídolo do Público (Gentleman Jim, 1942), de Raoul Walsh

O Ídolo do Público é todo acelerado. Parece uma screwball comedy, só que não é bem uma comédia, apesar de ter bastante humor. A chave está no único momento em que seu ritmo se acalma. O filme passa a respirar não mais o ar apressado do personagem de Errol Flynn (Gentleman Jim), mas o ar então tranquilo do lutador que perdeu o título, interpretado por um maravilhoso Ward Bond (que no restante do filme tem o mesmo ar apressado de tudo e de todos). A humildade do bom perdedor perturba Jim, porque humildade é exatamente o pouco que lhe falta, a gota de autocrítica e comedimento necessária para que consiga tudo o que quer sem ter de machucar as pessoas ao seu redor. Vem, então, a grande lição que ele terá em sua carreira (na verdade, em sua vida). Daí o ritmo mais calmo. É um filme maravilhoso, à altura dos maiores do diretor (Os Heróis Esquecidos, Meu Último Refúgio). Só a distribuidora é que assusta. É uma daquelas que lança de tudo, sem muito critério de imagem. Como o filme é preto e branco e anterior e anterior a 1953, difícil termos problemas com o formato. Mesmo assim achei melhor avisar.

* Jane Eyre (1944), de Robert Stevenson

Em entrevista para Peter Bogdanovich, Orson Welles conta que, embora não creditado, foi produtor de Jane Eyre (1944), adaptação do romance de Charlotte Brontë. Além disso, teria dado inúmeras sugestões de tomadas ao diretor Robert Stevenson, "um sujeito legal" que depois ficaria famoso por filmes juvenis como Mary Poppins (1964), Se o Meu Fusca Falasse (1968) e o telefilme A Ilha no Topo do Mundo (1974).

Acredite-se ou não em Welles, é fato que a direção deste belo romance gótico tem inúmeros pontos de contato com Cidadão Kane (1941) e Soberba (1942), os primeiros longas dirigidos por Welles antes de seu embarque para o Brasil e de sua subsequente perda de poder em Hollywood.

Jane Eyre é da Fox, um dos estúdios que deixavam forte marca em suas produções. Mas nada desse peso consegue atrapalhar a força da interpretação de Joan Fontaine no papel título, da menina órfã que só encontra a felicidade quando adulta, após um passagem tenebrosa por um colégio interno; e o carisma de Welles, tocante como o solitário e amargurado Edward Rochester.

* JEAN ROUCH (coleção)

A Pirâmide Humana (1961), de Jean Rouch

Cocorico! Monsieur Poulet (1975), de Jean Rouch, Damouré Zika e Lam Ibrahima Dia

Havia uma disputa ideológica, nos anos 1960, entre o cinema-verdade francês, exemplificado pela obra de Jean Rouch e Edgar Morin, e o cinema-direto americano de nomes como Albert e David Maysles, Robert Drew, Richard Leacock e D.A. Pennebaker (representado por jóias como Primárias e Don't Look Back).

A Pirâmide Humana (1960), de Jean Rouch, é o filme síntese da ideia já esboçada anteriormente em Eu, um Negro (1959), do mesmo diretor: o responsável pela filmagem deve intervir, provocar o acontecimento que se revela diante da câmera. A proposta então é colocar estudantes europeus e africanos lado a lado, criando seus diálogos e reações e tentando extrair daí relacionamentos que ultrapassem a delicada questão racial. "A única regra do jogo", segundo o próprio Rouch no início do filme, "foi a improvisação espontânea".

As implicações éticas, morais e filosóficas de A Pirâmide Humana certamente não cabem aqui. Elas não se esgotam facilmente. Não é só um filme muito influente para a Nouvelle Vague francesa; é também um marco do documentário moderno, referência para qualquer diretor que se aventure nas ondas do documentário, de Frederick Wiseman a Eduardo Coutinho.

Cocorico! Monsieur Poulet, de 1975, mostra Rouch em outro momento. No princípio, seria um documentário sobre vendedores de frangos na África (o título original seria traduzido como "Cocoricó! Senhor Frango"). Tornou-se uma outra coisa a partir do envolvimento de dois homens que se tornaram personagens e, posteriormente, codiretores: Damouré Zika e Lam Ibrahima Dia. Essa outra coisa não difere muito do restante do trabalho de Rouch. Pelo contrário: confirma as obsessões do autor na demolição de fronteiras entre ficção e documentário.

* Mistérios de Lisboa (2010), de Raul Ruiz

Um novelo é desembaraçado lentamente, e os fios se reúnem formando, ao final do processo, uma peça esplendorosa. Essa é a sensação que tem o espectador ao ver Mistérios de Lisboa, minissérie para a TV dirigida pelo cineasta chileno Raúl Ruiz.

Acompanhamos uma série de histórias relacionadas a João, aliás, Pedro da Silva, desde seu nascimento, passando pelo colégio interno até sua ascensão na sociedade lisboeta. Vários personagens cruzam seu caminho. Melhor dizendo: o nosso caminho. O padre Dinis é um dos mais fascinantes. Inicialmente apresentado como uma autoridade fria, aos poucos se revela a figura central da história, um tipo cheio de facetas e identidades. É o verdadeiro protagonista de Mistérios de Lisboa

Essas histórias são amarradas com invejável habilidade por Ruiz, utilizando a estratégia dos personagens que contam histórias para desfiar os inúmeros mistérios e amarrar personagens e situações. Trata-se de um balaio de aparências e mentiras que é desmascarado lentamente, obedecendo as nuances de um grande painel do comportamento humano. A câmera de Ruiz promove um constante rearranjo do quadro, como se convidasse constantemente os atores a adotar uma nova relação com o espaço cênico.

Acumulando pequenas histórias por meio de flashbacks que se encavalam, frequentemente um dentro do outro, e oferecendo um retrato interessante da sociedade de Lisboa no século 19, Mistérios de Lisboa é um daqueles filmes que nos mostram que ainda é possível fazer grande cinema no mundo atual. Também no formato televisivo.

* A Mulher da Areia (Suna no Onna, 1964), de Hiroshi Teshigahara

O artista plástico Hiroshi Teshigahara enveredou frequentemente pelo cinema, e na década de 1960 realizou, em parceria com o escritor Kobo Abe, uma tetralogia sobre a identidade do homem moderno japonês, estilhaçado espiritualmente pela burocracia e pelo crescimento desordenado dos centros urbanos.

O mais famoso desses filmes – e o melhor – é este A Mulher da Areia (1964), sobre um entomologista (Eiji Okada, de Hiroshima Mon Amour) que vai ao deserto pesquisar insetos da areia. Quando perde o ônibus de volta, ele é obrigado a se hospedar com uma mulher que mora em uma cabana instalada num grande buraco na areia. Logo ele percebe que sua vida passa a ser dedicada a entender as condições do lugar, porque dali ele não mais sairá.

Erotismo e experimentações diversas (sobretudo com texturas de imagens, com a trilha sonora e com a edição de som), além de um trabalho notável com o ritmo, marcam esta verdadeira obra-prima da nouvelle vague japonesa (Nuberu Bagu). Completam a série com Kobo Abe os longas A Armadilha (1962), O Rosto de um Outro (1966) e O Mapa Destruído (1968).

* O Mundo por um Fio (Welt am Draht, 1973), de Rainer Werner Fassbinder

Computadores de última geração constroem e sustentam o Simulacron, rede com quase 10 mil identidades que reproduz a vida em sociedade, como em O Show de Truman (1998), longa de Peter Weir. Fred Stiller é nomeado diretor desse troço, depois que Vollmer, o antigo ocupante do cargo, morre misteriosamente. Teria sido assassinado? O que esse homem teria descoberto para merecer tão drástico destino? Seríamos todos simples marionetes de uma força movida a dinheiro e poder?

Ficção científica de 1973, O Mundo Por Um Fio é a segunda minissérie do diretor alemão Fassbinder, após Oito Horas Não São Um Dia. Ambas foram realizadas num momento em que ele estava encantado com a descoberta dos melodramas de Douglas Sirk. Mesmo assim, arriscava-se em outros departamentos para dar conta de sua personalidade inquieta.

Baseado no romance "Simulacron 3", de Daniel F. Galouye, O Mundo Por Um Fio contem boa parte da trupe de atores formada pelo diretor (com destaque para Klaus Lowitsch no papel de Stiller), cenários cheios de superfícies reflexivas e o tipo de maneirismo de câmera que casa muito bem com o gênero, e que Fassbinder fazia questão de explorar até mais em trabalhos televisivos (como Nora Helmer ou Como um Pássaro no Fio também mostram).

* A Ponte do Rio Kwai (The Bridge on the River Kwai, 1957), de David Lean

Longa que inaugura a fase mais grandiosa – e incompreendida – do excelente diretor inglês David Lean, A Ponte do Rio Kwai apresenta um elenco multinacional de primeira, capitaneado pelo americano William Holden e pelo inglês Alec Guinness, com destaque também para o ator japonês Sessue Hayakawa, já veterano em papéis coadjuvantes em Hollywood, como o rígido Coronel Saito.

Durante a Segunda Guerra Mundial, prisioneiros de guerra ingleses são forçados a construir uma ponte para os japoneses. Por causa de sua importância estratégica para o Japão, os aliados pretendem derrubá-la, contrariando a vontade do Coronel Nicholson (Guinness), que vê a construção da ponte como um símbolo da eficiência britânica (a engenharia do exército nipônico, pelo contrário, é retratada como incompetente).

Ninguém esquece a música assobiada pelos soldados, e o roteiro assinado por Carl Foreman e Michael Wilson, baseado no romance de Pierre Boulle, é perfeito para o senso de ritmo de Lean. Há sobretudo o duelo entre os coronéis, cada qual com sua fleuma, sua classe, sua teimosia e sua fraqueza.

Providence (1977), de Alain Resnais

Tendo iniciado sua carreira sob o signo da história, Resnais sempre foi um diretor predominantemente sério, até Providence (1977). Mas esse humor demora um pouco para se libertar de uma estranheza que parece manter-se intencionalmente e com felicidade. Em Providence fica clara essa operação. São tantas as quebras de ritmo, as gags tortuosas, que ficamos nos perguntando se Resnais quer ou não implodir, em seus filmes, qualquer possibilidade de riso. O humor de Resnais parece o de Jacques Tati, temperado com o de Jacques Demy, mas com uma verve buñuelesca que extrapola o conceito de cômico e se aproxima de um estado vertiginoso e onírico.

Mas é num campo bem terreno que esse humor funciona. Assim, Providence parece um filme único, que ao mesmo tempo em que dialoga com uma época, revela-se como algo suspenso no tempo. Um filme de E.T., feito por um diretor que parece se divertir com a negação do riso, ao mesmo tempo em que flerta abertamente com ele. Talvez seja necessário se despir de todos os conceitos de humor, desde Max Linder, passando por Jerry Lewis e culminando com Monty Python, para se divertir abertamente com o filme. Que essa excentricidade toda não desanime a quem ousar ver ou rever Providence, um primor de idéias conectadas propositadamente em desalinho. Um antifilme, se fosse assinado por João César Monteiro. Uma obra-prima, de qualquer modo que se encare.

Saló ou os 120 Dias de Sodoma (Salo, 1975), de Pier Paolo Pasolini

Sem muito alarde, sai por uma dessas distribuidoras que vivem do que as majors desprezam (sem se importar tanto com a qualidade) o escandaloso Saló, que Glauber dizia, com razão, ser o melhor filme de Pasolini. É seu último filme, o de mise en scène mais rigorosa, aquele com que ele procura expurgar o ódio ao fascismo que corrompe a humanidade por meio de uma série de crueldades perpetradas por uma elite suja e sádica. Muitos associam a este filme, o último que realizou, o principal motivo de seu assassinato, ainda em 1975. Hoje, diante de tantas imagens e acontecimentos abjetos que dominam o mundo, parece pouca coisa o que o filme nos entrega de perversão e crueldade, mas na época, era a reação possível de um artista inconformado por ver que tudo que gritava era absorvido e adulterado pela ordem burguesa (no caso, sua trilogia da vida, filmada no início dos anos 1970). Imagino que até hoje as imagens do ”ciclo da merda" provoquem enjoos em boa parte dos espectadores.

* O Sanatório (Sanatorium Pod Klepsidra, 1973), de Wojciech Has

Após o espetacular Manuscrito de Saragoça (1965), admirado por Buñuel, é lançado no Brasil outro longa do diretor Wojciech Has, figura importante do cinema moderno polonês. Trata-se de O Sanatório (1973), baseado em contos do escritor polonês Bruno Schulz. Diferentemente do preto e branco contrastado do primeiro filme, este carrega nas cores para traduzir o onirismo febril do relato com uma câmera precisa e de incrível movimentação.

Começa com um pássaro voando com árvores secas por trás, no que parece ser a animação de alguma gravura do século 19. Logo percebemos que a imagem é projetada como se fosse a paisagem vista da janela de um trem. É o modo de evocar uma janela que se abre para o mundo dos sonhos, ou seja, o cinema. O trem leva Jozef ao sanatório onde está internado seu pai, um lugar de outra dimensão, com uma lógica bem particular do tempo e do espaço. Mas qualquer resumo da história é insuficiente para O Sanatório, assim como o filme permite inúmeras leituras e alegorias políticas. É o tipo de cinema que parece existir numa realidade paralela, o mundo de Wojciech Has.

Singularidades de uma Rapariga Loira (2010), de Manoel de Oliveira

A Versátil lança este belíssimo filme de Oliveira como parte de seu pacote em parceria com a Mostra Internacional de Cinema. Pode ser inferior aos dois últimos do mestre, O Estranho Caso de Angélica e O Gebo e a Sombra, mas qual não é? Oliveira estica uma divertida anedota até o tamanho de um longa. Percebe-se claramente o esforço para ultrapassar a marca dos 60 minutos, e há uma clara divisão entre antes e depois do pronunciamento solene e antológico do personagem de Luis Miguel Cintra.

Há um plano um tanto bocó levando em conta o histórico do diretor: aquele em que Ricardo Trêpa, saltitante, comemora o flerte consumado com a loira da frente. Mas há também alguns momentos que rivalizam com os melhores da carreira de Oliveira: além do pronunciamento mencioado acima, temos o primeiro encontro do casal, a elipse do enriquecimento do protagonista e a cena final com a rapariga apanhada com a boca na botija.

O filme deveria servir de lição aos diretores que procuram aumentar seus curtas e médias para inscrevê-los em festivais. Oliveira mostra o caminho.

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