Ano VII

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (Texto 2)

terça-feira abr 15, 2014

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), de Daniel Ribeiro

Gostar ou desgostar de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, nos mais variados graus, depende, em certa medida, do entendimento do conceito de politicamente correto (de sua necessidade e importância na sociedade), e da tolerância com o exagero de seu emprego, o que em última instância enfraquece bastante toda a ideia provocando um sentimento forte de ressaca. O exagero do politicamente correto atinge, por exemplo, artistas de outro contexto histórico: Monteiro Lobato há pouco tempo, Pierre Louÿs mais recentemente; há outros casos. Isso faz, na pior das hipóteses, que surja uma corrente de radicais reafirmando o racismo e a violência contra as mulheres; e num nível menos assustador, mas quase tão nocivo, a censura pura e simples.

O exagero pode atingir também um diretor de cinema inseguro o suficiente para se arriscar à polêmica (e, ainda assim houve quem criticasse a representação do garoto cego, pois cegos não se incomodam com o uso do verbo "ver", o que talvez explique, embora não justifique, tamanha preocupação). A insegurança do diretor, no caso, Daniel Ribeiro, faz com que todo seu filme seja moldado pelo cuidado. Não o cuidado formal, que o primeiro plano, de uma geometria rara no filme, pode sugerir. Mas o cuidado para não machucar ninguém, para não cair na polêmica, pender a balança para o lado açucarado da vida.

Uma vez que o filme de Ribeiro não tenha nada que o condene ao lixo da história do cinema, como também nada que o faça ser acima da média do que se tem feito por aí, está na observação dos detalhes (no que se sai razoavelmente bem) e na subserviência à cartilha do politicamente correto (o ponto em que se atrapalha) a chave para gostar ou desgostar do filme (já deixei bem claro em outras ocasiões que não rezo segundo a cartilha de que não importa se o crítico gosta ou não do filme, porque, a meu ver, importa, sim). E se já usei tanto a expressão politicamente correto, é porque o filme se atém fortemente a essa cartilha, e de modo tão calculado, que grande parte de seu possível encanto (o cotidiano dos adolescentes, suas angústias em tempos de pouco compromisso, a relação com os pais, o medo da não aceitação, o desacordo com o corpo ou a mente, a forte presença do garoto que comete bullying) nunca chega a desabrochar de fato. Temos lampejos, aqui e ali, quase sempre sabotados por uma linha de diálogo, uma reação qualquer que entrega a cartilha por trás da narrativa.

É de se lamentar ainda que haja uma outra cartilha tosando o filme: a da construção esquemática de situações e personagens. Em vários momentos os adolescentes parecem andar com camisa de força, incapazes de revelar suas contradições, ambiguidades e inconstâncias. São personagens demais, criações de papel, que servem a uma ideia, e só a ela: a pregação do entendimento universal e da aceitação do outro. Os poucos momentos em que se podia escapar dessa prisão esquemática – a festa da Karina, o banho dos dois no vestiário, os momentos de bullying, Giovana jogando a vodca na grama depois de uma revelação de Leo – acabam falhando, numa escala mais particular, por uma escolha errada no tempo dos planos ou por um excesso de zelo na direção de atores, na maneira como são ditas as falas; e numa escala mais geral, pela suavização dos principais conflitos (exceto aquele entre Leo e seus pais, que é compreensível e exposto na medida certa) e pela necessidade de se fechar tudo (o bullying, a solteirice de Giovana, o estremecimento da amizade). O bullying, por sinal, parece coisa de conto de fadas pensado para crianças mais frágeis emocionalmente. Sei que a intenção foi suavizar tudo para mostrar um mundo que pode facilmente se harmonizar. Mas se não há brecha para o imponderável, e se há um cálculo excessivo com tudo que é dito, essa harmonia se torna artificial demais.

Há um ou outro momento em que o talento de alguns atores e a vontade dos adolescentes conseguem forjar uma aparência de realidade. E o filme parece buscar justamente essa realidade de encenação o tempo todo, o efeito "câmera invisível que testemunha ações cotidianas de lugares privilegiados", usando, por vezes, elipses que rompem a ação de forma um tanto brusca (algo que Rohmer fazia muito bem, por exemplo). As elipses de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho raramente funcionam. Trabalhar com elipses parece fácil, mas não é (da mesma forma que não é fácil conseguir a impressão de câmera invisível). O que se deixa de mostrar tem muita importância. Não é apenas um jogo de revela/esconde com o espectador. Este deve ser instado a completar alguns momentos, a participar do filme preenchendo as lacunas deixadas pelas elipses, ou simplesmente ficar no suspense quanto ao que pode ter acontecido. Se não há interesse em completar as lacunas, ou se as lacunas são grandes ou equivocadas demais para serem sequer imaginadas, ou se o que pode ter acontecido é importante demais para não ser mostrado, fica como uma construção cheia de tijolos ocos.

Tomemos como exemplo a cena do banho. Gabriel fica excitado ao ver Leo debaixo do chuveiro e mal consegue esconder a ereção depois que Leo tira a bermuda (não vejo como problema que essa tentativa de esconder a ereção seja inútil, uma vez que só nós poderíamos testemunhá-la). Não vemos o momento em que Leo sai do chuveiro e vai se enxugar na frente do amigo, assim como é sonegada a saída deles do vestiário. No momento seguinte, Leo está com febre, em seu quarto. Isso nos frustra, pois a grande tensão do filme é a que existe entre Gabriel e Leo, e nesse momento temos o primeiro sinal evidente (tirando pequenas amostras como carícia no rosto e bronzeador no tórax) de que há uma tensão sexual forte entre os dois (e nesse sentido, o beijo de supetão na festa, que Gabriel finge ter esquecido, foi uma solução bem trabalhada no filme).

Sonegar qualquer momento importante nessa relação é um ato de extremo perigo, que tanto pode significar uma estratégia na relação com o espectador quanto uma fraqueza de roteiro pela incapacidade de dar conta de um momento desses, ou ainda falta de percepção para sentir a importância do que se deixou de fora, mesmo considerando que alguns filmes se constroem dessa maneira (Muriel, de Resnais, por exemplo). Em Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, essa construção inexiste; as elipses parecem acidentes, nunca intrigam de fato. Só causam frustração.

Sérgio Alpendre

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Texto de Heitor Augusto

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