A imagem que falta
A Imagem que Falta (L'image manquante, 2013) de Rithy Panh
A Imagem que Falta, de Rithy Panh, é um filme que nasce sob a égide da lacuna. Seu título já anuncia uma ausência, a qual será transformada, logo nas primeiras falas do narrador em primeira pessoa, na pedra fundamental do filme. Panh (através da narração de Randal Douc) afirma que sempre procurou uma imagem, produzida durante os anos em que o Khmer Vermelho comandou o Camboja. Como nunca a encontrou, resolveu produzi-la. O que vemos em seguida é o fruto dessa inquietação, dessa angústia, dessa procura insaciável. A Imagem que Falta é a fabricação de uma matéria capaz de suprir e eternizar essa lacuna, de simultaneamente rememorar, eternizar e historicizar o horror que foi o genocídio de cerca de 2 milhões de seres humanos.
Tarefa árdua e posição incomoda as quais Panh se coloca. Num mundo no qual as imagens ganharam um estatuto inequívoco de espetáculo, raros são os casos de filmes que ainda conseguem transpassar o peso de uma tragédia – como foi o caso cambojano – através de sua rememoração. Para Panh, a principal forma de responder a essa perda de capacidade das imagens em fazer perdurar essa trágica memória é através da encenação. Assim, a fabricação da matéria que irá suprir e fazer perdurar a lacuna enunciada, surge através de um procedimento – a encenação – tradicionalmente identificado com o cinema de ficção, mas que desde Flaherty (Nanook, o esquimó e Os Pescadores de Aran) é recorrentemente utilizado por documentaristas. Contudo, a presença massiva em filmes recentes indica, em certos casos, uma certa banalização do procedimento, uma tentativa de entrecruzamento entre documentário e ficção somente pelo mero efeito de estranhamento entre os masteriais – o que acaba por tornar-se um novo lugar-comum.
Mas A imagem que falta se coloca muito distante de alguma tentativa de diálogo com – ou inserção em – qualquer “tendência contemporânea” do documentário. O assunto de que trata é muito sério e por isso mesmo não tem medo de recorrer seja à narração em primeira pessoa seja à encenação – procedimentos considerados ou anacrônicos ou banalizados – de forma a garantir uma espécie de acesso direto e potente aos objetivos que se coloca. Seu principal impasse advém, contudo, da própria trajetória que o cineasta trilhou, do papel que tomou para si e da importância de sua filmografia pregressa.
Desde Site 2 (1989), seu primeiro documentário, pode-se dizer que os filmes de Rithy Panh vêem carregados de um sentimento de urgência. Naquele momento, final dos anos 80 e início dos anos 90, o registro da vida de cambojanos vivendo em campos de refugiados possuía tanto um caráter de ineditismo quanto de necessidade: a primeira imagem de Site 2, o rosto sofrido da mulher que será a protagonista do filme, parece condensar e trazer a luz todo o peso histórico de um processo que exterminou boa parte da população daquele país, mas que até então só era conhecido por registros estrangeiros, geralmente imagens de TV, que conferiam pouca importância aos indivíduos que sofreram com tal desgraça. Site 2 inverte radicalmente tal lógica. Daí em diante, seja em seus documentários ou nas poucas ficções que dirigiu, Panh se firmou como uma espécie de “cineasta do genocídio cambojano”, uma vez que seus filmes, ao retratarem a vida daquelas pessoas traziam, mesmo que indiretamente, o espectro histórico do regime do Khmer Vermelho, objeto de terror contínuo no cotidiano daquele povo.
Em S21 – A Máquina de Morte do Khmer Vermelho (2003), o procedimento de encenação no documentário surge como forma de resistência a esse esvaziamento da memória, num momento no qual o peso carregado pelo registro de Site 2 começava a ser alijado por uma espécie de insensibilidade histórica. A Imagem que Falta parece responder à uma necessidade semelhante, sua lacuna surge como algo dentro da própria obra de Rithy Panh: após uma filmografia inteira dedicada a registrar a vida de seu povo, a tragédia que o marcou e a sua persistência, como ainda produzir uma imagem capaz de transmitir o peso do horror, a persistência das marcas dessa tragédia – as quais a indiferença da contemporaneidade serão incapazes de apagar, pelo menos para quem a vivencia diariamente – e ao mesmo tempo frisar a incompletude, a característica sempre lacunar de qualquer tentativa de representação de tal história (talvez a única forma do registro dar conta da gravidade que é o extermínio de 2 milhões de pessoas, e assim perdurar na nossa memória)? Qual imagem que, apesar de toda uma filmografia dedicada à essa história, ainda falta?
As encenações surgem através de bonecos feitos argila, inseridos em maquetes, um registro muito próximo da animação. Porém, a principal estratégia de Panh, para produzir sua imagem que falta, reside na profusão de materiais. Em conjunto com a encenação dos bonecos e a narração em primeira pessoa, surgem diversos outros registros: filmes oficiais do regime de Pol Pot, antigos filmes cambojanos e até mesmo o registro do homem chegando à lua. Uma multifacetação que parece frisar a onipresença do horror.
A figura de Pol Pot caminhando sorridente por dentre seus partidários; a fotografia do rosto de uma jovem que nos encara firmemente, parecendo desafiar aqueles que a prenderam; a imagem de uma menina, que morreu de inanição, e que Panh, após uma certa resistência, finalmente nos mostra; a população reunida para assistir à chegada do homem à lua, ou a um filme de propaganda do regime, que após projetados no cenário de maquete, nos é mostrado por inteiro, e no qual vemos uma série de pessoas caminhando em fileiras quase geométricas, realizando trabalhos forçados; uma mãe sendo denunciada pelo próprio filho aos oficiais do Khmer Vermelho; a história de um cinegrafista oficial do sanguinário regime, que possivelmente tentou, através de suas imagens, denunciar, ou pelo menos demonstrar um certo incomodo e descompasso com aquilo que elas mostravam.
A profusão de histórias e relatos, em consonância com uma também profusão e sobreposição de materiais utilizados, aponta para existência do horror em todas as instâncias: desde os indivíduos, como a garota que morreu de inanição, o pai do próprio diretor, o cinegrafista que velava algumas de suas imagens, a mãe que morreu pela denúncia do filho e mesmo a temível figura do ditador Pol Pot, registrada de perto e sorridente; até os grandes grupos, a sociedade como um todo, como nas cenas das pessoas nos campos de trabalho forçado ou sendo agrupadas para assistir um filme-propaganda do regime. Para além de apontar tal profusão e existência do horror em todas as instâncias possíveis, as imagens de Panh apontam também para uma consciência não só da permanência inevitável e dolorida dessa memória, mas também de seu pertencimento à uma geopolítica global, que apesar de qualquer sentimentalismo para com a triste história do genocídio cambojano, ainda insiste em condenar tal população à uma condição opressora, eternos coletores de arroz, subservientes aos colonizadores (hoje cinicamente chamados de parceiros comerciais) – algo já insinuado no final de Uma Barragem Contra o Pacífico (2008).
Numa cena de S21 – A Máquina de Morte do Khmer Vermelho, dois homens que serviram ao regime de Pol Pot se sentam à mesa com um homem que foi preso e torturado pelo mesmo regime. Na conversa, a vítima insiste não apenas na impossibilidade de reconciliação, mas sim na permanência inevitável e essencial dessa condição de não-reconciliados. A imagem que falta é, de certa forma, o prolongamento e a ampliação desse austero sentimento de não-reconciliação.
Guilherme Savioli
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