Nebraska
Nebraska (2013), de Alexander Payne
A figura convalescida de Woody (Bruce Dern) invade o saloon durante um escarnecimento público de sua pessoa. Ele caminha até o seu rival, Ed Pegram (Stacy Keach), toma-lhe o que lhe é devido e, depois de um breve momento de silêncio, sai sem cumprir qualquer expectativa de retaliação física ao escárnio presenciado. Seu filho, David (Will Forte), vai, logo em seguida à saída do pai, igualmente em direção ao rival. Hesita na troca de olhares, nenhuma retaliação novamente. Ele se vira e acompanhamos seu olhar por um breve instante, o suficiente para condensar quase todo espírito e força do novo filme de Alexander Payne. David se vira bruscamente, desajeitadamente e dá um soco em Ed. Seu soco não é carregado de uma potencia plena, redentora e vingadora enquanto gesto. Seu soco é a confirmação da impossibilidade de vingança e redenção através de uma ação como essa num Estados Unidos onde a afirmação de uma identidade e de uma existência sustentadas pelo american dream soa como um anacronismo quase fantasioso.
Nebraska opera dentro de uma certa lógica e iconografia forjadas pelo western, gênero americano por excelência. A jornada que desbrava o país, os planos gerais de grandes paisagens, o retorno espinhoso à cidade natal e até mesmo a relação conflituosa e de aprendizado entre gerações. Não se trata, porém, de um mero revival fetichista de um gênero emblemático. Payne tem plena consciência da impossibilidade da moral sustentada pelo western ser reproduzida sem qualquer problematização – “Este cinema de espetáculo, de aventura, de suspense, de emoção, entrou em colapso justamente porque o tempo da reflexão, da dúvida, da crítica, da perplexidade, começou” escreveu Glauber Rocha em seu O século do cinema numa abordagem sobre o gênero – e por isso mesmo cada plano parece carregar um sentimento de incomodo, um certo mal-estar contemporâneo (sendo o plano do soco e a sequência final os exemplos maiores). Se o referente é o imaginário e a iconografia de um gênero que narrou a ocupação territorial e o surgimento da identidade cultural do homem que habita o interior profundo dos EUA, assim o é com o intuito de colocar em crise, tendo em vista uma real e desiludida experiência contemporânea, alguns valores morais trazidos em seu bojo.
Longe de um decadentismo auto-complacente, dotado de um cinismo supostamente crítico (mas no fundo profundamente conservador) em relação à contemporaneidade (Beleza americana) ou de um falso entusiasmo naive, sem qualquer traço de desconfiança crítica (e por isso mesmo igualmente auto-complacente) em sua apreensão do tempo histórico (Frances Ha); Nebraska se constitui como um olhar desconfiado. É impossível para Woody concretizar seu sonho de enriquecer, seu “bilhete premiado” é uma farsa e sua jornada é profundamente tragicômica. Sua “marcha para o oeste” não diz respeito ao registro de uma história enaltecedora ou da forja de uma identidade cultural, sua “marcha” é sim a fixação de uma desconfiança dessa história gloriosa, dessa identidade cultural calcada no american dream.
Seu tom tragicômico confere gravidade e dignidade às personagens que se encontram impossibilitadas de prosseguir acreditando em valores e instituições que não lhes dizem mais respeito. Assim, essa perda vivenciada por eles (em especial Woody e David) não se configura como uma descrença cínica e arrependida. Sua descrença é registrada como algo inerente/essencial à existência, se situando entre a tragédia e a comédia, uma descrença política na medida em que não teme em transitar por uma iconografia tão forte e enraizada no imaginário quanto a do western, não a fim de somente criticar a validade de sua moral nos dias de hoje, mas sim de ter um ponto de partida concreto, um referencial, para registrar essa profunda descrença, esse profundo mal-estar. Nesse sentido, a travessia final de Woody pela cidade, culminando com o último plano, no qual sua falsa fantasia é desfeita novamente, também é uma exemplar síntese da força do filme.
Guilherme Savioli
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