Philomena
Philomena (2013), de Stephen Frears
Martin Sixsmith (Steve Coogan) é um cético jornalista e Philomena (Judi Dench) é uma senhora católica praticante. Martin é um corpo frágil e desde o início faz-se questão de frisar tal fragilidade da forma mais direta e frontal possível (quiçá excessivamente sublinhado): sua figura nos é apresentada logo após perder o emprego, em um caso que ganhou as redes nacionais – desde então é um corpo que se comporta de forma desconfortável e constrangida. Philomena por sua vez é uma figura sofrida e crente. Ela surge para nós de forma tão frontal e direta quanto Martin, ainda mais incisiva talvez, uma vez que sua memória, sua trajetória pretérita de sofrimento (e motivo pelo qual irá se encontrar com Martin) é projetada para nós. Uma lembrança a qual temos acesso e através da qual a existência atual de Philomena – ainda envolta em uma fé numa igreja que pouco se mostrou benevolente a ela – ganha um peso e uma seriedade as quais o ceticismo e fracasso pessoal de Martin não possuem acesso, muito pelo contrário, se encontram muito distantes.
A disposição desses elementos, geridos a partir de um procedimento de tipificação e narração romanesca quase exacerbada apontam para um caminho bem óbvio, no qual o contato entre os dois personagens irá induzir uma espécie de jornada de redenção para o protagonista Martin, que diante da traumática experiência de vida de Philomena é capaz de reconhecer sua ignorância cética, bem como a sabedoria oriunda dos mistérios da fé e do perdão sustentados pela senhora. O fato é que Frears possui uma evidente consciência desse procedimento de acesso direto, quase sem obstáculos e contradições, aos tipos e aos ideais representados por Philomena e Martin, e por conseguinte às expectativas de jornada geradas a partir desse encontro. Sua mise en scène acentua a todo momento a oposição entre essas crenças, entre essas visões de mundo e de resposta a um evento traumático do passado – o plano em que ela sai irritada da igreja sem cumprir o ritual com a água benta, cruzando o quadro no qual ao fundo se encontra Martin, é emblemático dessa disposição direta dos elementos realizada por Frears.
Apenas isso não seria o suficiente para que o enunciado pela superfície de sua representação se cumprisse sem temores, sem qualquer desestabilização, sem qualquer rompante que nos negasse essa adesão simplória aos tipos, fazendo com que seus dramas se cumprissem sem qualquer peso existencial, fadados ao buraco vazio do esquecimento. Mas a sina de seus personagens parece nunca se cumprir, as expectativas geradas por essa exposição tão direta nos são sempre negadas, ou melhor, adiadas. A jornada de Philomena é subitamente interrompida pela notícia da morte do filho que procurava, ao mesmo tempo que pela primeira vez a expressão constrangida de Martin (adicionada de uma certa dose de impaciência e compaixão após conhecer Philomena) muda bruscamente, perdida no horizonte, como se aquele jogo de tipificações, sustentado até então pelo decorrer dos eventos, se tornasse subitamente insustentável.
Esses momentos de suspensão, frestas abertas por uma espécie de interrupção do fluxo natural do destino que esperamos que tais tipos cumpram na trama, sempre constituíram os grandes momentos do cinema de Stephen Frears. O rosto encurralado de John Malkovich após sair do quarto de Michelle Pfeiffer em Ligações perigosas, o rosto da mesma Michelle Pfeiffer se contorcendo de uma agonia existencial, Glenn Close entrando em colapso também em Ligações Perigosas, o duelo acidentado entre mãe e filho no final de Os imorais, o encontro entre John Hurt e Terence Stamp na floresta em O traidor, o olhar final lançado aos amantes de Minha adorável lavanderia, culminando talvez com toda a extensão de A rainha - filme por natureza erigido a partir do díptico expectativa/negação – são os exemplos mais acabados. O regime de representações e expectativas até então sustentado é suspenso por um breve período, o suficiente para se abrir um universo e uma eternidade, nos quais o peso existencial do drama representado não se encerra na superfície dos tipos recorrentes, mas sim os ultrapassa violentamente, apontando para uma coexistência inevitável entre o prazer e a incerteza na experiência humana, e assim, fazendo com que o referencial tipificado exista quase que como uma comparação injusta, algo que nos soa um absurdo a partir de então.
Nesse sentido Philomena se apresenta como uma espécie de filme-impasse, ainda mais enxergando-o dentro da própria filmografia de Frears, que não raro se entrega de corpo e alma, numa crença cega, à representação tipificada, em filmes (Alta fidelidade, Liam, Coisas belas e sujas, O dobro ou nada) cuja construção parecem de uma irresponsabilidade e discrepância absurdas em relação ao esmero, engenhosidade e potencia de seus grandes filmes. O impasse apresentado por Philomena reside no fato de que em sua construção eclodem momentos que claramente demonstram a não adesão cega aos tipos e ao pathos até então esboçados, mas suas potencias de suspensão são sempre adiadas, o conflito entre o ceticismo tímido de Martin e a religiosidade benevolente não se cumpre na esfera da fácil adesão daquele a essa – é uma promessa que não se cumpre.
A mera conversão de Martin não é almejada por Frears. Martin não compreende a benevolência e a capacidade de perdão de Philomena, mas nem por isso aponta-se para um final redentor, muito pelo contrário, tais visões de mundo são colocadas por sua mise en scène numa silenciosa rota de colisão, como se em algum momento fosse se revelar, apesar da timidez de Martin, um choque visceral entre uma visão católica e uma visão nietzschiana da existência. Colisão esta que tão logo brota tão logo é expulsa na cena final. O momento de suspensão definitivo, depois do qual não se pode mais adiar tal colisão, é em si novamente um adiamento. Aqui Frears não aponta para nada. A coexistência em paz entre tais personagem, após o breve enfrentamento, não pertence aos grandes momentos de seu cinema, nos quais a incerteza e o prazer perante a aventura humana são sensações mútuas; mas também não pertence aos piores momentos, nos quais a adesão cega aos tipos esvazia sua representação – Philomena é um impasse, e infelizmente sua promessa não cumprida o aproxima muito mais do esvaziamento do que da convivência entre a incerteza e o prazer.
Guilherme Savioli
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