Trapaça
Trapaça (American Hustle, 2013), de David O. Russell
Curioso começo de ano, esse de 2014: se Martin Scorsese, com O Lobo de Wall Street, entrega seu primeiro filme relevante em mais ou menos 20 anos, David O. Russell joga fora de vez nossas esperanças de que um dia ele se tornaria um realizador além do meramente competente, criando, aqui em Trapaça, um simulacro divertido, porém absolutamente descartável, do universo referencial do diretor de Depois de Horas. Munido das ferramentas cujo esgotamento já se fazia claro em Cassino, de 1995, Russell constrói um farsa cômica baseada – abertamente da maneira mais livre possível – numa operação do FBI chamada Abscam. Nela, os federais utilizaram-se do auxílio de um golpista para flagrar um grupo de políticos corruptos, no final dos anos 70.
Logo nos créditos iniciais percebemos, sem qualquer dificuldade, os mecanismos através dos quais a encenação se dará: sob uma indefectível câmera lenta, os personagens principais caminham pelos corredores de um sofisticado hotel, ao som da bela “Dirty Work”, dos americanos do Steely Dan. Da sépia da fotografia aos figurinos, penteados e joias, essas primeiras imagens terão suas propostas confirmadas nas cenas seguintes, onde a câmera, em constante movimento, irá com frequência avançar velozmente a um primeiro plano dos personagens; esses, ordinariamente, apresentados com breves e bem-humorados flashbacks, tendo seus perfis restrito à suas maiores idiossincrasias como, por exemplo, uma fulana que ama, sobretudo, gatos, ou um ciclano, notório por impor seu respeito ao deixar os corpos de suas vitimas expostos nas ruas.
No plano temático, também podemos aproximá-lo não apenas de O Lobo de Wall Street, mas a tantos outros Scorsese: Cristian Bale é o charlatão principal, alguém talentoso que tem uma esposa, Jennifer Lawrence (deslumbrante), mas não consegue largá-la para ficar com a amante e parceira de tramoia, Amy Adams (quase tão deslumbrante quanto). Após ser pego por fraude, decide colaborar com um agente, interpretado por Bradley Cooper. Os quatro irão envolver-se em relações que não raro se encaminharão para explosivas querelas conjugais, plena de gritos e tapas. Uma história de sexo, dinheiro, poder. De ascensão e queda, portanto, na qual o grande mérito não está em suas abusivas e espertalhonas idas e vindas temporais, mas na descoberta tardia de para quem esse destino estava delineado.
Como nas últimas e premiadas produções de Russell, sua maior aptidão encontra-se supostamente na direção de atores, sempre alguns bons (ou ridículos) tons acima, o que pode explicar seu apreço por tipos bipolares. Neste caso, são a esposa e a amante que manipulam ambos personagens masculinos e é em Amy Adams (deslumbrante) e Jennifer Lawrence (ainda mais) que o prazer da experiência de ver o filme se dará. A primeira é uma sagaz trapaceira, que avisa de antemão a seu parceiro exatamente o que irá fazer com o policial. O problema é que ela o faz tão bem, chegando até a deixar seu cabelo cacheado como o do pobre agente do FBI, que ninguém parece mais certo de suas intenções. Já sua arquirrival feminina é o oposto: uma deslumbrada amalucada e bebum, saída diretamente de algum filme de Woody Allen.
Em retrospecto, Trapaça incomoda menos por aquilo que é (e não incomoda nada, por ser tão pouco), do que por aquilo que causa: uma aceitação praticamente unânime da crítica americana. Portanto, para este fevereiro, a solução está ao gosto do freguês: quem quiser um Scorsese derivativo, à moda de Os Infiltrados, não perca este Russell; quem optar por um trabalho de um frescor inesperadamente recuperado, fique com O Lobo de Wall Street.
Bruno Cursini
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