Quando eu era vivo
Quando Eu Era Vivo (2013), de Marco Dutra
O público brasileiro já se acostumou a sentir arrepios – de admiração ou não – ao ouvir a voz da cantora Sandy Leah, desde os anos 1980. Arrepios de saudade ou vergonha também podem nos surpreender quando encontramos um boneco do Fofão, um compacto de Elizângela, alguma tapeçaria horrorosa emoldurada ou velhos registros familiares em VHS.
Exceto, porém, no caso de Sandy, que se consagrou como cantora pop, aqueles bonecos, discos, tapeçarias e vídeos tiveram que se contentar em sobreviver, esquecidos, nos velhos quartinhos da bagunça de muitos apartamentos.
Finalmente, em 2014, o novo filme de Marco Dutra, Quando Eu Era Vivo, nos deu um novo motivo para sentir arrepios diante da voz de Sandy e dessas lembranças ambíguas dos anos 1980 acumuladas em quartos de empregada (até que enfim!) desativados: o terror.
Co-diretor de Trabalhar Cansa (2011) e de vários curtas fantásticos ao lado de Juliana Rojas, Dutra estreia na direção solo de longa-metragem com o primeiro filme de horror brasileiro a ter um grande lançamento comercial desde Encarnação do Demônio, de Mojica, em 2008. E seu olhar nostálgico para a memorabília dos anos 1980 – que inclui o próprio horror, gênero muito consumido em vídeo por crianças e adolescentes naquela década – é o que o filme tem de mais poderoso.
Mas, claro, não é só isso.
O horror vem atravessando uma boa fase no cinema brasileiro, e o ano de 2014 promete vários lançamentos comerciais do gênero. Quando Eu Era Vivo é o primeiro de uma safra que contará ainda com o filme de zumbis Mar Negro, de Rodrigo Aragão (que fecha a trilogia independente iniciada com Mangue Negro, de 2009, e A Noite do Chupa-Cabras, de 2011) e com outros longas como o carioca Isolados, de Thomas Portella, estrelado por Bruno Gagliasso.
Em meio a essa aguardada safra, as credenciais do filme de Dutra impressionam.
Em primeiro lugar, pela equipe experiente que inclui o produtor Rodrigo Teixeira (de filmes como Heleno e Abismo Prateado), o diretor/roteirista Daniel Chaia na assistência de direção, a própria Juliana Rojas como montadora e o apoio do coletivo Filmes do Caixote, responsável por produções como Trabalhar Cansa e também O Que se Move, de Caetano Gotardo.
Além disso, o roteiro de Dutra e Gabriela Amaral Almeida é possivelmente a melhor adaptação de uma obra de Lourenço Mutarelli (no caso, A Arte de Produzir Efeito sem Causa) para o cinema, depois dos irregulares O Cheiro do Ralo (Heitor Dhalia, 2007) e Natimorto (Paulo Machline, 2009), ambos também produzidos por Teixeira.
Por fim, as presenças de Sandy e de Antonio Fagundes apontam para uma tentativa saudável de experimentar com um gênero popular que escape das comédias e cinebiografias hoje dominantes no cinema comercial brasileiro.
Tudo isso fez com que as apostas e expectativas em torno de Quando Eu Era Vivo se tornassem altas, a ponto do longa ter sido selecionado para abrir o Festival de Tiradentes. E, pelo menos para os críticos e os primeiros espectadores, o filme disse a que veio.
A história de Quando Eu Era Vivo traz Luís Júnior (Marat Descartes), recém separado da esposa e do filho, que retorna à casa do pai viúvo, Luís “Sênior” (Antonio Fagundes), para reorganizar sua vida. Apesar do esforço do pai, a tensão entre os dois é grande desde o início, e envolve maus presságios como uma voz masculina que, à noite, lamenta a solidão e a loucura, aos berros, em frente ao prédio em que mora a família. Esses gritos – mais tarde saberemos – trazem à lembrança o irmão caçula, Pedro (Kiko Bertholini), internado em um sanatório após tentativa de matar o próprio pai.
As coisas pioram entre esses homens quando entra em cena o elemento feminino, que se espalha por todos os cantos: nos objetos que pertenceram à mãe morta, reunidos no quartinho dos fundos; na voz de Elizângela em disco de vinil girando ao contrário; na manicure-benzedeira que frequenta a casa (Gilda Nomacce); na inesperada imagem de Nossa Senhora Aparecida, mas principalmente na presença da jovem Bruna (Sandy Leah), estudante de música que aluga o quarto que pertencera a Júnior e Pedro quando meninos. Como é frequente nos filmes de horror, são essas mulheres que trarão o sobrenatural. Mas virá dos homens a escalada de violência.
Em Quando Eu Era Vivo, a equipe parece à vontade com a tradição do cinema de horror. Nota-se, por exemplo, na minuciosa direção de arte, referências à “trilogia do apartamento” de Polanski (composta por Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary e O Inquilino). Marat Descartes também mencionou a influência do trabalho de Jack Nicholson em O Iluminado, de Kubrick, na composição de seu personagem. A macabra canção de ninar transformada em música-tema tem outros antecedentes luxuosos, como Os Inocentes, de Jack Clayton.
Mas as referências a filmes mais recentes, como o horror espírita O Sexto Sentido, também estão por toda a parte. Mesmo a tendência contemporânea dos “filmes encontrados” (como os da franquia Atividade Paranormali) está contemplada em alguns dos melhores momentos, quando Júnior reencontra os vídeos de sua infância. Nesses vídeos (gravados mesmo em VHS), as suas memórias ao lado do irmão e da mãe católica e ocultista ajudam não apenas a preencher lacunas de sua história, mas também a ressignificar o ambiente do apartamento, progressivamente mais assombrado.
Essa multiplicidade de referências, porém, não quer dizer que estejamos diante de uma coletânea de citações. Longe disso. A consistência de Quando Eu Era Vivo persiste mesmo em suas ambiguidades propositais, que já são marcas do trabalho de Dutra.
No entanto, aquela que poderia ser a maior força do filme, Sandy – por resumir, com sua presença, o deslocamento do imaginário pop dos anos 1980 –, é também a sua maior fraqueza.
Afinal, trata-se de uma atriz ainda pouco experiente colocada diante do desafio de encarnar, em poucas cenas, uma trajetória que vai da indiferença ao profundo envolvimento com um passado sinistro que não lhe diz respeito. Não é, portanto, um papel fácil. E, nesse quesito, ela ficou devendo. A atriz também foi prejudicada por uma maquiagem de pop star que foge do restante do elenco, o que a deixou ainda mais deslocada. Se o recurso foi proposital, parece ter funcionado da pior maneira.
Por outro lado, mesmo em meio às atuações excelentes de Fagundes, Marat e Bertholini, está na presença de Sandy, também, o que o filme tem de mais original.
Pois o clímax se dá quando ela entoa, ao lado de Marat Descartes, a canção tema, composta pelo diretor em parceria com Guilherme Garbato. E essa cena poderá entrar para qualquer antologia do horror brasileiro pela forma como consegue amalgamar diferentes horrores – dos traumas da infância, do fanatismo religioso, dos produtos chamados de “lixo cultural” e da classe média decadente – todos de uma só vez. Depois disso, nunca mais ouviremos a voz Sandy do mesmo jeito. E isso não é pouco.
Dutra já está envolvido na realização de mais um longa de horror. Trata-se de uma história de lobisomem chamada As Boas Maneiras, novamente em co-direção com Juliana Rojas. Ele também menciona planos para um filme de vampiros. Na mesma trilha, Roberto Moreira (de Contra Todos) promete lançar em breve o thriller sobrenatural Terapia do medo.
Se esses filmes tiverem a força de Quando Eu Era Vivo, é possível que estejamos testemunhando uma nova fase de sucesso para o horror paulista, semelhante à que tivemos no final dos anos 1970, quando nomes como Walter Hugo Khouri, John Doo e Jean Garrett davam ao gênero alguns de seus clássicos nacionais, como os sucessos As Filhas do Fogo, Ninfas Diabólicas e A Força dos Sentidos.
Laura Cánepa
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