Twixt (Texto 1)
Virgínia (Twixt, 2011), de Francis Ford Coppola
Na abertura de Virgínia, aos sons de uma trilha-sonora típica de produções B de terror e o badalar de um sino, vemos uma sucessão de imagens contextuais: um xerife idoso que modela pequenos objetos em madeira; uma torre com um relógio de sete faces cujos horários nunca batem; um hotel no qual algo tão “aterrorizador ocorreu que é melhor não falar sobre”, e, por fim; um grupo de góticos que podem, ou não, venerar o diabo, liderado por um motoqueiro que seduz “jovens inocentes”. É neste vilarejo fantasmagórico que Hall Baltimore (Val Kilmer), um escritor alcoólatra de segunda categoria, supostamente fará uma sessão de autógrafos de mais um de seus livros sobre feitiçaria. O tom é farsesco e referencial, e é sobre estes signos imediatamente reconhecíveis que Francis Ford Coppola irá fazer o derradeiro capítulo de sua trilogia “de estudante” – assim por ele denominada.
Se Velha Juventude fora rodado na Romênia e Tetro na Argentina, agora Coppola volta a sua casa (quase literalmente falando), para o que de início parece uma mera brincadeira de gênero. E o é, em alguma medida. No entanto, o paradoxo de Virgínia é que aos poucos se percebe seu claro contexto pessoal: por um lado, o personagem principal é alguém decadente, cujos primeiros trabalhos foram bem recebidos por crítica e público, mas que após este início triunfante, torna-se uma sombra de si mesmo; por outro lado, parte de sua derrocada deu-se por um trauma pessoal: sua filha morreu em um trágico acidente durante um passeio de barco, ao tentar passar por outras duas embarcações sem perceber que entre eles havia um cabo de reboque. Esta foi, também, a maneira como o cineasta, nos anos 80, perdeu um filho, Gio.
O que de inicio parecia apenas a continuação de uma vertente de Coppola iniciada em Dementia 13 e depois, pelo caráter de horror gótico, com Drácula de Bram Stoker, torna-se um projeto dolorosamente pessoal, e se isso não pode servir para legitimar o que quer que seja, fica difícil negar a habilidade com que o cineasta costura um tema que lhe é tão caro com um humor e prazer joviais, raramente vistos em sua carreira. Sua encenação funda-se nesta dualidade: há o relacionamento de Hall e o xerife com pretensões artísticas (interpretado por Bruce Dern), e há os sonhos do escritor com Virgínia: uma garota alta e pálida, com dentes de coelho – outra personagem inesquecível de Elle Fanning, atriz que já fez mágica ao tornar uma música da Gwen Stefani a mais bonita que se pode ter, e também já deixou embasbacados alguns moleques que tentavam fazer um filme, antes de serem interrompidos por um acidente ferroviário.
Nestas contaminações simultâneas entre sonho e realidade, vida e morte, arte e comércio, Coppola engendra (pelo excesso, pela caricatura) uma poesia lúdica estritamente cinematográfica, na qual os anseios do protagonista em exorcizar pela arte os eventos de sua vida geram imagens de uma beleza assustadora, em longas sequências de sonho, sempre sob as luzes artificias de noites suspensas no tempo e espaço.
O primeiro destes encantamentos começa no quarto de Hall, após uma conversa via Skype com sua esposa (algo que se repetirá ao longo da história, nunca de maneira menos do que hilária, com a verdadeira ex-mulher de Kilmer do outro lado da tela do computador). Hipnotizado pelo sino, ele admira a torre através da janela. A câmera, usualmente fixa, vertiginosamente pende ao lado, sentido anti-horário. Na próxima imagem, somos apresentados ao preto e branco que irá demarcar estas cenas. A penumbra da floresta é cortada pelo branco da névoa. Corvos são ouvidos. Durante a caminhada, as palavras que saem das bocas do homem e da garota parecem ecos. Pela terceira vez, badaladas anunciam a chegada da meia-noite. A menina não entra no hotel. No saguão, Edgar Allan Poe, em pessoa, discorre sobre a fatalidade implacável do tempo e, mais objetivamente, a respeito do massacre que ali ocorrera. Ele é interrompido pela atendente do local, que deixa de arrumar a mesa de jantar e, com um violão, senta-se no sofá. Começa uma versão da tradicional “The Big Rock Candy Mountain”, de Harry McClintock. Como o pêndulo trôpego de um relógio, Poe se balança. Virgínia, à maneira da assombração que de fato é, surge por trás de um vidro embaçado. Presente e ausente. Sublime.
Francis Ford Coppola, um velho romântico, faz deste um de seus mais belos momentos. Outros o seguirão. Sem ideias “à prova de bala”, abusando de “bruma sobre o lago”, com muita “merda de estilo”.
Bruno Cursini
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