Apontamentos para a filmografia comentada
Apontamentos para a filmografia comentada de Fassbinder
Por Sérgio Alpendre
1) Fassbinder sempre disse em entrevistas, principalmente durante a segunda metade dos anos 1970, que gostaria que o conjunto de seus filmes formasse uma casa, e essa casa seria, então, sua carreira. Cada filme funcionaria, nesse caso, como uma parte da casa. Haveria portas, janelas, paredes, pisos, tetos, e por aí vai. Isso fez com que alguns críticos especulassem quais os papeis representados por cada filme. Quais deles seriam as paredes, por exemplo? Aqueles mais sólidos, mais dependentes de uma dramaturgia forte, os melodramas? Ou aqueles que funcionam como divisões das diversas fases percorridas pelo diretor. O Comerciante das Quatro Estações (1971), por exemplo, seria a parede que separa o cômodo dos primeiros filmes, do gangsterismo e da experiência com o anti-teatro, do cômodo das descobertas da potência do melodrama via Douglas Sirk. Despair (1977) seria o divisor entre a fase da crueldade (se é que podemos chamá-la assim), que abarca filmes como O Assado de Satã e Roleta Chinesa, e a fase histórica, de filmes como O Casamento de Maria Braun e Lili Marlene. De qualquer jeito que se pense nessa casa, teremos uma única planta: Berlin Alexanderplatz. A minissérie é a base para a construção da mansão de Fassbinder, o ponto de partida e chegada de todos os filmes do diretor (até mesmo aqueles cuja conexão com a base é menos evidente). Paira como referência para os filmes anteriores e como sombra para os posteriores. E talvez seja justamente essa planta, tão solidamente pensada, tão brilhante em suas passagens secretas e corredores propositalmente mal iluminados, que permitiu a Fassbinder a realização de 41 filmes (contando longas, telefilmes e minisséries) em apenas 14 anos.
2) Os filmes de Fassbinder possuem claras conexões entre si. Essas conexões são apontadas, de maneiras ligeiramente diferentes, por Yann Lardeau (em francês) e Thomas Elsaesser (em inglês), em seus livros sobre o diretor, respectivamente Rainer Werner Fassbinder – coleção “Auteurs” da Cahiers du Cinéma – e Fassbinder’s Germany (ambos são os melhores livros que li sobre Fassbinder, a despeito de coisas bem interessantes no de Robert Katz e no de Ronald Hayman, e da coletânea de artigos A Anarquia da Fantasia ser uma pedida ótima e fácil de encontrar). Mais do que possuir conexões, os filmes permitem uma série notável de subdivisões de sua obra integral. Existe a cronológica, normalmente composta de quatro partes – a fase antiteatro (1969-1970), a fase melodramática (1971-1974), a fase de transição (1975-1976) e a fase histórica (1977-1982). Mas, como todas as outras possíveis divisões, essa tem suas falhas. É possível apontar, por exemplo, que Lili Marlene é um senhor melodrama, e sua ligação com Douglas Sirk (via Amar e Sofrer) é evidente. Num Ano com 13 Luas igualmente revela essa filiação com o melodrama. De uma maneira geral, Fassbinder descobriu o melodrama e não mais o largou, e isso não tem nada a ver com a definição purista (e correta) que conceitua melodrama como música (melos) mais drama. Tem a ver mais com um entendimento das regras do gênero, e com a filiação de Fassbinder a tais regras, ainda que estas sejam modificadas de acordo com o seu universo (ou a sua casa).
3) Talvez seja interessante (ainda que igualmente manco) apontar filmes matriciais em sua obra. Dessa maneira temos, claro, o primeiro longa, O Amor é Mais Frio Que a Morte, que apontaria para os bandidos pés-de-chinelo, em referências constantes ao cinema B americano. Uma outra matriz é inaugurada com O Comerciante das Quatro Estações. Trata-se da matriz sirkiana, pois foi em 1971 que Fassbinder descobriu os melodramas de Douglas Sirk (e escreveu, no ano seguinte, um belo artigo que pode ser lido, em português, na coletânea A Anarquia da Fantasia). Os filmes que seguem esse caminho podem ser comentários sociais contemporâneos (O Medo Devora a Alma), teatralizados (As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant) ou históricos (Effi Briest). Mas neles o maravilhamento com o cinema de Douglas Sirk, especialmente o da década de 1950, é sensível. Uma outra matriz, dizem, é inaugurada com O Destino do Mais Forte é a Liberdade (também um melodrama), filme que retrata a homossexualidade na Alemanha dos anos 1970 e os preconceitos de classe inerentes à vida em sociedade. Mas é possível considerar essa matriz como uma variação da matriz sirkiana (da mesma maneira que outras variações virão, notadamente com Medo do Medo, Num Ano Com 13 Luas e O Desespero de Veronika Voss), uma vez que trata-se de um melodrama dos mais tocantes. A matriz da crueldade seria inaugurada com Mamãe Kusters Vai Para o Céu, no qual Fassbinder desfere seus golpes nas facções da esquerda alemã, inábeis no combate ao nazismo de cada dia. Importante considerar que nesse mesmo ano a peça O Lixo, A Cidade e a Morte enfrentou extrema resistência por ser considerada antissemita. As pessoas daquela época (e, podemos dizer, ainda agora) não entendem e não aceitam críticas. Colocar um judeu rico e inescrupuloso em cena é sinal de antissemitismo, e dessa maneira passamos longe de qualquer possibilidade de discussão que a peça, que investigava o crescimento econômico assustador da cidade de Frankfurt, ponta de lança do poderio germânico nos anos 1970, poderia causar. No ano seguinte surgiriam os dois filmes mais emblemáticos dessa fase da crueldade: O Assado de Satã e Roleta Chinesa. O primeiro carrega nas tintas da sátira, e meio que se autoimplode. O segundo é um golpe com luvas de pelica na falsa modernidade de casais burgueses da época. Por último, existe a fase histórica, representada por Berlin Alexanderplatz. É certo que dentro dessa fase veio antes O Casamento de Maria Braun. E podemos dizer que Despair seria o filme matricial desse período histórico – estamos na passagem dos anos 20 para os anos 30, com a ascensão do nazismo em curso e a crise existencial da classe média deixando suas feridas. Mas é sabido que Fassbinder sempre almejou a adaptação da obra literária de Alfred Döblin (já filmada de maneira mais simplória em 1931 por Phil Jutzi), e por esse motivo nomeou diversos de seus protagonistas Franz, como o de Berlin Alexanderplatz, Franz Biberkopf. Berlin Alexanderplatz é visto por Yann Lardeau como a peça fundamental de toda a carreira de Fassbinder, o filme que norteou todos os outros filmes, feitos antes ou depois. Não seria somente o filme-chave dessa fase histórica, mas representa a chave para se entender toda a obra do diretor.
4) Num Ano de 13 Luas também representa papel central na filmografia de Fassbinder (algo que Thomas Elsaesser estranha, por sinal, e com suas razões). Feito logo após o suicídio de seu amante Armin Meier, para quem é dedicado, o filme é muito mais complexo do que qualquer outro na carreira do diretor (complexidade que não é ignorada na maior parte dos estudos sobre o filme ou o cineasta). Já foi definido como um estudo sobre a modernização de Frankfurt, processo que provoca incrível sofrimento nas pessoas mais sensíveis – algo que a tomada aérea da cidade em um momento-chave, assim como as brincadeiras infantis do especulador imobiliário (visto como um gangster) com seus capangas, evidencia. A conexão com uma peça escrita por Fassbinder, Der Mull, die Stadt und der Tod (O Lixo, a Cidade e a Morte“, 1975) é evidente, e também é relatada pelos historiadores, pois a cidade retratada na peça é Frankfurt, e há a presença de um judeu especulador. A ligação com o suicídio de Armin Meier é obrigatória, mas não se encontram muitos traços biográficos (ou autobiográficos) evidentes. Ao associar o tema do filme – os últimos dias de Elvira, transsexual que vive uma situação de tripla rejeição – a uma crendice sobre anos de lua e anos com 13 luas, Fassbinder percorre um caminho de fabulação trágica, algo como um comentário alegórico sobre a situação da Alemanha Ocidental na década de 1970. Por isso é considerado até atípico em sua carreira, sempre atenta aos problemas históricos e sociais. Para terminar o filme com rapidez, Fassbinder acumulou funções: é escritor, produtor, diretor, diretor de fotografia e operador de câmera, além de ter feito a montagem, com Juliane Lorenz. Esse acúmulo faz com que o filme seja mais pessoal do que sua trama indica. Ainda que todos os filmes de Fassbinder (ou, vá lá, quase todos) sejam pessoais, este consegue, paradoxalmente, um certo distanciamento por meio de referências a obras artísticas que fizeram a cabeça do diretor, e ao mesmo tempo uma proximidade com o que ele já havia feito: além da peça acima citada, há conexões com Despair, Martha, O Comerciante das Quatro Estações e O Direito do Mais Forte é a Liberdade, conexões que vão muito além da repetição de certos atores ou técnicos da equipe. (na foto acima, eles ensaiam o número musical de O Meninão, com Jerry Lewis e Dean Martin, e Gottfried John termina no colo de Gunther Kaufmann)
5) Já disse em outro texto, mas vale trazer para estes apontamentos. É erro tremendo menosprezar um filme de Fassbinder por ter sido feito para a TV. Claro que esse menosprezo não atinge o gigante Berlin Alexanderplatz, mas é comum acontecer com filmes menos celebrados, muitas vezes injustamente. Mesmo quando filmava em videotape, caso, por exemplo, do plasticamente sublime Nora Helmer, a preocupação com o estilo é imensa. O contrário pode acontecer, por exemplo, com um filme grandioso como Despair (um dos maiores orçamentos de sua carreira, senão o maior – que talvez seja Querelle). Na nota de rodapé do livro O Amor é Mais Frio do que a Morte, de Robert Katz, sobre a vida intensa de Fassbinder, Peter Chatel conta que ia representar o diretor na coletiva sobre Despair, exibido no Festival de Cannes de 1978. Segundo o relato de Chatel:
Antes de ir para a entrevista coletiva, fiz a Rainer algumas perguntas, prevendo que naturalmente seriam feitas na entrevista, como, por exemplo, por que apareciam tantos nazistas no começo do filme e depois não se via mais nenhum. Rainer disse: “Eu esqueci de filmar esses planos”. “E eu deveria dizer isso aos jornalistas?”. “Não”, respondeu Rainer, “diga a eles que os nazistas aparecem no início porque em 1933 estavam muito presentes à consciência das pessoas, mas que depois todos se acostumaram a essa presença e deixaram de reparar nela”.
Ou seja, o cuidado imenso que se pode ver em cada aspecto visual de Nora Helmer não aconteceu com o caríssimo Despair (se bem que é possível ver, ao longo deste filme, soldados nazistas andando em alguns dos planos gerais de rua). Obviamente Despair não sofre com isso. O que pretendo afirmar aqui é que os telefilmes – produções geralmente rápidas e baratas – podem ser tão brilhantes como os filmes mais cuidados para cinema (vale lembrar de Cottafavi e Rossellini, entre outros cineastas que trabalharam bastante na televisão). Alguns telefilmes, de fato, atingem a excelência, elevando o nível das produções ao longo da história da televisão. São eles, além do já citado Nora Helmer: A Viagem de Niklashausen, Pioneiros em Ingolstadt, Martha, Como um Pássaro no Fio, Medo do Medo, Eu Só Quero Que Vocês Me Amem, Bolwieser e Mulheres em Nova York. Produções em número e qualidade nada desprezível.
6) Por último, gostaria de destacar os atores e atrizes que frequentam a mansão de Fassbinder com mais frequência. São muitos, e escrevo sob o grande risco de esquecer alguns nomes (ainda que a proposta seja nomear só os mais importantes mesmo).
a) Em primeiro lugar, a atriz que mais se projetou para além do universo fassbinderiano: Hanna Schygulla (que filmou com Wajda, Godard, Scola, Ferreri). Ela aparece pela primeira vez em O Amor é Mais Frio Que a Morte, e é frequente até Effi Briest (quando Fassbinder se desencantou com seu estrelismo). Volta a trabalhar com o diretor quatro anos depois, em O Casamento de Maria Braun, e com ele ainda faz o inesquecível Lili Marlene, além de ter papéis importantes em A Terceira Geração e Berlin Alexanderplatz. Outra atriz essencial para se entender a obra de Fassbinder é Margit Carstensen, a sofredora típica em seus filmes (condição alcançada em Martha, e confirmada sobretudo em Medo do Medo). Presente principalmente na fase melodramática, a atriz participa também da fase da crueldade, em especial na obra-prima Roleta Chinesa (seu papel em O Assado de Satã, por outro lado, parece mais uma vingança de Fassbinder com algo que ele considerou traição na época). Carstensen faz seu último filme com Fassbinder em 1979: A Terceira Geração. Seu encontro com Schygulla em As Lágrimas Amargas de Petra von Kant é inesquecível. Brigitte Mira também é muito importante nessa fase intermediária, de meados dos anos 70, e é marcante em três filmes: O Medo Devora a Alma, Como um Pássaro no Fio e Mamãe Kusters Vai Para o Céu. É uma grande atriz que só conseguia papeis de relevo quando trabalhava com Fassbinder. Vale destacar ainda as presenças brilhantes de Ingrid Caven (cantora aparentemente nunca muito valorizada por ele), Irm Hermann, Eva Mattes e Barbara Sukova, sendo que esta última é importantíssima na última fase por interpretar os principais papéis femininos de Berlin Alexanderplatz (Sukova nunca esteve tão bela como aqui) e Lola.
b) Entre os atores, não encontramos presenças que cheguem perto da força demonstrada pelas atrizes (sobretudo Carstensen, Schygulla e Mira). É possível destacar Gunther Kaufmann, ator carismático que acompanhou Fassbinder em todas as fases da carreira, com especial participação em Os Deuses da Peste, Whity (no personagem-título) e Num Ano Com Treze Luas, no qual ele interpreta um engraçadíssimo segurança e dança, com seu corpanzil, como se fosse um performer de musical americano. Volker Spengler é outro que atravessa todas as fases, com destaque para seu papel como Erwin/Elvira em Num Ano Com Treze Luas e como o terrorista de A Terceira Geração. Ulli Lommel é importantíssimo na primeira fase, principalmente em O Amor é Mais Frio Que a Morte, e tendo algum espaço até pelo menos Roleta Chinesa. Não podemos esquecer de Harry Baer (em especial por Deuses da Peste e Encruzilhada das Bestas Humanas), Kurt Raab (o assustador Senhor R de Por Que Deu a Louca no Senhor R?), Gottfried John (assombroso em todos os sentidos em Berlin Alexanderplatz), Hans Hirschmüller (sublime em O Mercador das Quatro Estações), El Hedi Ben Salem (sobretudo por O Medo Devora a Alma), Peter Chatel (em O Direito do Mais Forte), Karlheinz Böhm (por Martha e O Direito do Mais Forte), Armin Meier (mais como amante, mas também como coadjuvante na fase intermediária), Gunther Lamprecht (por sua tour de force em Berlin Alexanderplatz), sem esquecer de Udo Kier (sempre um coadjuvante importante).
c) Vale dizer ainda que Peer Raben, com sua música sempre bela e eficaz, como também Michael Ballhaus e Xaver Schwarzenberger, os melhores diretores de fotografia que passaram pela casa de Fassbinder, têm participação fundamental na construção de sua carreira, assim como as montadoras Thea Eymèsz e Juliane Lorenz.
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br