Ano VII

Filmografia Fassbinder – Parte 4 (1978-1982)

terça-feira dez 17, 2013

O Casamento de Maria Braun (Die Ehe der Maria Braun, 1978)

Hanna Schygulla. Tendo participado de 20 produções de Fassbinder, seja para a televisão ou cinema (incluindo o primeiro longa-metragem do diretor), é por este papel, como Maria Braun, que ela será para sempre lembrada. O fato deste também ser o mais reconhecido filme do cineasta faz jus à importância que um exerceu na carreira do outro, algo preconizado pelo realizador alemão logo na primeira vez em que ele a viu, ainda em uma escola para atores.

Sua composição para a personagem-título é exemplar: esta mulher, de rosto normalmente vago, sobrevivendo estoicamente entre os escombros da Segunda Guerra, com uma moral elástica a ponto da inexistência, personificará com poucas sutilezas as transformações de uma nação deslocada, espelhando isso na ausência de seu marido, com quem se casara na cena dos créditos iniciais, por trás de uma ilustração de Hitler. É a tensão tipicamente fassbinderiana entre o público e o privado, ilustrada também em seu futuro relacionamento com um soldado americano negro, em um dos momentos de assimilação de seus exatos valores de uso e troca.

Seu impasse está no ímpeto de andar somente em frente para, ao final, ter de lidar com seu vetor inicial: seu antigo amor (seu esposo) pertence ao passado, e sua rigidez de intenção a faz sufocar seu caduco projeto de vida. No momento em que sua independência torna-se absoluta (em paralelo a recuperação sem retrovisores da Alemanha), nada do que era faz mais sentido.

Em uma entrevista dada há 10 anos, Schygulla lembra que Fassbinder queria construir uma casa com seus filmes. Para ela, O Casamento de Maria Braun seria a porta de entrada. De minha parte, seu lindo rosto, acendendo um cigarro no fogão, seria a única fachada possível. E a mais bela e trágica.

Bruno Cursini

 

Num Ano com 13 Luas (In Einem Jahr Mit 13 Monden, 1978)

Em certo momento da obra-prima Num Ano com 13 Luas, Ingrid Caven entra na casa de jogos onde Volker Spengler está chorando sob a música do Roxy Music (“A Song for Europe”). Quando cruza com o mesmo imigrante que dá umas porradas em Volker, no início viscontiano do filme, eles se entreolham, numa espécie de retomada do primeiro encontro de Karlheinz Böhm com Margit Carstensen em Martha. Só que desta vez a câmera permanece imóvel enquanto eles é que giram, vagarosamente, repetindo a vertigem do outro filme. As consequências são bem distintas, mas há uma clara relação entre as cenas: em Fassbinder, há sempre o vampiro e o vampirizado, a pessoa que suga e a que é sugada.

Esse é um movimento típico deste que é um dos filmes de Fassbinder que mais aludem a outros filmes: Morte em Veneza (1971 – o Adágio de Mahler), Amarcord (1973 – a música de Nino Rota), Nós Não Envelheceremos Juntos (1972 – visto na TV pela personagem de Caven), O Meninão (1955 – visto na TV pelo personagem de Gottfried John e seus capangas, que imitam a performance de Jerry Lewis).

O letreiro do prólogo informa que em anos da lua que são também anos com 13 novas luas, pessoas cujas vidas são reguladas pela emoção sofrem drasticamente. 1978 é um desses anos, assim como 1957 e 1992 (e alguns outros poucos no século XX). Uma dessas pessoas é Erwin/Elvira (Spengler), outra delas, suponho, é o homem que se enforca com justificativa filosófica, numa cena registrada com frieza invulgar e a impressionante fotografia do próprio Fassbinder (que mostra como aprendeu bem com Michael Ballhaus).

Sérgio Alpendre

 

A Terceira Geração (Die Dritte Generation, 1979)

A Terceira Geração é um filme a ser sempre decifrado; cinema em tom de farsa, filme de mentira como Solaris e como todo o cinema, para usar a fala do empresário da área de informática que manipula os terroristas e forja seu próprio sequestro. Mas essa grande e inventiva mentira, definida por Fassbinder como comédia ou brincadeira de salão em seis partes: “comédia picante e engraçada, com sentimentos e tensões, polêmica e caricatura, com brutalidade e estupidez, tudo numa atmosfera de sonho, como um conto de fadas que se conta às crianças para que elas melhor possam suportar sua vida de mortos-vivos”, traz e vaticina verdades que parecem eternas.

Fassbinder defende no filme que o capital inventou o terrorismo para aproveitá-lo em seu sistema de dominação. As tais três gerações – a 1ª, de 68, idealista, que queria mudar o mundo e imaginava fazê-lo apenas com palavras e manifestações; a 2ª, do Baader-Meinhof, que passou da legalidade à luta armada e dela à completa ilegalidade, e a 3ª, que agia sem pensar e sem ter ideologia ou política e, sem saber, deixou-se manipular como marionete – parece extremamente atual se as relacionarmos à contemporaneidade e aos grupos que hoje contestam o sistema.

Absurdamente rico do ponto de vista da encenação, Fassbinder acentua a atmosfera caótica da narrativa, sobrepondo camadas sonoras aos diálogos, nem sempre audíveis ou inteligíveis, dando conta da cacofonia moderna gerada pelos meios de comunicação de massa – rádios, tvs – entre outros ruídos que invadiam o espaço doméstico – o que a crítica chamou à época de “terror sonoro”.

A farsa, revelada na sequência final, o filme dentro do filme, é cheia de personagens mascarados. A Terceira Geração é de todos os tempos e assustadoramente atual. Um filme a ser redescoberto.

Cesar Zamberlan

Berlin Alexanderplatz (1980)

Monumento com 941 minutos divididos em 13 capítulos e um epílogo. Quando vi pela primeira vez, na TV Cultura, em algum momento dos anos 1990, estranhei o aspecto folhetinesco, diferente de tudo que eu tinha visto de Fassbinder até então. Mas é evidente que toda a carreira de Fassbinder, a tal casa de que ele tanto falava, está concentrada nesta minissérie sem igual. Berlin Alexanderplatz é a base da casa, é o que a sustenta. Ou a planta, a partir da qual a casa será construída, podemos dizer. Tudo parte desse filme, do personagem Franz (nome de tantos outros protagonistas de Fassbinder).

Podemos ver claramente um pouco de todas as suas outras fases: o gangsterismo revisionista do cinema americano B dos primeiros filmes, os melodramas influenciados por Douglas Sirk, as fábulas de crueldade de meados dos anos 1970, a análise da história da Alemanha da série de filmes históricos da segunda metade dos anos 1970 e, finalmente, no epílogo incrivelmente onírico de mais de duas horas, os momentos delirantes que irrompem em muitos de seus filmes (Brigitte Mira e os musculosos em Como um Pássaro no Fio, a menina paraplégica dançando Kraftwerk em Roleta Chinesa, o segurança revistando todos que entram no apartamento de Elwira em Num Ano Com Treze Luas, o clima apocalíptico e viscontiniano do clímax de Whity, a cena da cabine telefônica em O Desespero de Veronika Voss etc).

Fassbinder investiga a gênese do nazismo nos anos 1920, a burguesia ultrajada, a classe média obtusa, as relações corrompidas entre homens e mulheres. Günter Lamprecht, que não é bem um ator fassbinderiano, apesar de ter participado anteriormente de três dos filmes do diretor, faz Franz Biberkopf, o papel principal. Esse ator de presença carismática compõe muito bem um personagem tão manipulado quanto manipulador, vítima tanto da podridão humana quanto de sua própria ignorância. Berlin Alexanderplatz pode parecer, num primeiro momento, folhetinesco e excessivo. Mas é na verdade uma das peças cinematográficas mais complexas de todos os tempos. Um brilhante estudo da contradição humana.

Sérgio Alpendre

 

Lili Marlene (Lili Marleen, 1980)

Talvez a própria existência deste texto, que deveria olhar especificamente para Lili Marlene, seja um equívoco. Quiçá mais recomendável seria colocar o filme como uma das partes do mosaico que inclui a Trilogia RFA, a minissérie Berlin Alexanderplatz e A Terceira Geração.

Faz-se aqui, porém, o esforço de isolar Lili Marlene dos outros, ainda que seja impossível evitar uma associação: Lili Marlene só completa sua teia de sentidos se emparelhado com O Desespero de Veronika Voss. Se naquele Fassbinder se estabelece na intersecção entre épico e melodrama de uma cantora que “inocentemente” surfa no sucesso durante o Nazismo, neste vemos uma projeção da mesma personagem na década seguinte, já na lista negra dos colaboracionistas.

Mas este microtexto deve comentar apenas Lili Marlene. Tentemos. Há o tom suntuoso, o plano acachapante, grandioso, diferente do antiteatro do começo da carreira de Fassbinder ou do melodrama distanciado. Novamente o mosaico me prende na redoma. Não dá para pensar na fotografia de Xaver Schwarzenberger sem lembrar daquela aura de sonho que banha Berlin Alexanderplatz, ainda mais com a citação explícita do plano da floresta, que é completado num dos episódios da minissérie.

Lili Marlene retoma também o tema da mulher aprisionada, seja por contingências histórico-política, seja pela instituição burguesa do casamento. No suntuoso plano em que Hanna Schygulla canta pela última vez a canção-tema, ela já não é mais um corpo vivo, senão um corpo morto, tragicamente destroçado. É quando Lili Marlene entrelaça, uma vez mais na obra de Fassbinder, o corpo derrotado tal como a esposa em Martha, a empregada abandonada de Pioneiros em Ingolstadt ou o ex-milionário de O Direito do Mais Forte à Liberdade.

Heitor Augusto

Lola (1981)

Lola com Barbara Sukowa nasceu de Anjo Azul com Dietrich. Imannuel Rat, o professor no filme de Sternberg que se apaixona e se perde por Lola Lola, a atriz de cabaré, é, no filme de Fassbinder, Van Bohm, o funcionário zeloso e incorruptível. Ao emular o drama de Sternberg, Fassbinder o atualiza tendo em vista a Alemanha do pós-guerra, mas sem deixar de lado a universalidade da história de amor e perdição. E a pergunta que ecoa em todos os seus filmes vai aparecer em Lola de forma literal: “Como viver num mundo que enoja?”. Ao mostrar as mazelas de uma sociedade de mãos sujas, o político, o empreiteiro, o falso cego e todo um microcosmo gerido pelo dinheiro e interesses pessoais de poder, Fassbinder responde a questão dando aos personagens, mesmo os mais sujos, uma dignidade impar.

O roteirista do filme, Peter Märthesheimer, afirma com precisão que Fassbinder vivia com seus personagens; “ama, sangra, sofre e morre com eles”. Daí a triste humanidade de Lola, a encarnação feminina de um Franz Biberkopf – e por que não do próprio diretor? – na sua busca por um lugar no mundo, ciente de quão sujo e nojento esse mundo é; e a desgraça de Van Bohm, parecida e complementar a Lola, ainda que este seja, por oposição, romântico, ingênuo, ético, não prostituído, e, por isso, de certa forma, mais patético.

No auge de sua filosofia fílmica e no auge do domínio narrativo do melodrama, com zooms preciosos e uma composição do plano iluminada em todos os sentidos, Fassbinder faz um de seus filmes mais duros e belos. E se o filme começa com uma canção cuja letra evoca a utopia de terras estrangeiras, “pois aqui é muito pequeno”, caberá a forte Lola lembrar a Van Bohm que toda canção acaba.

Cesar Zamberlan

 

Theater in Trance (1981)

Em Theater in Trance Fassbinder lida com uma dramaturgia que busca o que as palavras não conseguem dizer, e nos apresenta uma série de expressões performáticas associadas à leitura (realizada pelo próprio Fassbinder, em off) de O Teatro e Seu Duplo de Artaud. O texto de Artaud insiste na semelhança entre a peste e o teatro: ambos mobilizam multidões e em seu auge provocam o transe – quando corpo e mente pressentem suas insuficiências e liberam o inconsciente.  A força deste teatro em transe dentro do filme está no desvelamento do bizarro por atuações que insistem na repetição de atos corriqueiros da vida social e doméstica, e na tentativa de reconfiguração de seu ritmo no cinema e no teatro, forte influência do Fluxus e do Antiteater.

O melhor deste documentário, no entanto, não são as filmagens das peças do festival Theater der Welt, e sim quando o cinema toma as rédeas de Theater in Trance: na introdução do filme, a câmera acompanha em discreto plongé os garçons do coquetel de abertura do festival e as expressões dos convidados  –  ofendidos, radiantes, mas sempre olhando para as bandejas de bebida, ignorando o ser humano por trás do uniforme  -  e isso logo após a tomada de uma pichação que reivindica o direito de moradia em Berlin, 1981. Nessa operação inicial, Fassbinder aponta para a distância entre as pretensões dessa arte performática e a realidade histórica imediata, o que consolida o caráter sintético de Theater in Trance: uma mescla da gritante realidade com as possibilidades expressivas do teatro, do cinema e da palavra.

Gabriela Wondracek Linck

 

O Desespero de Veronika Voss (Die Sehnsucht der Veronika Voss, 1981)

Veronika Voss se passa em 1955, um ano após o final de Maria Braun. É a terceira parte do tríptico sobre o estado das coisas na Alemanha do Pós-Guerra; todas elas protagonizadas por mulheres. Diferentemente das outras, a protagonista é, por definição, frágil, já surgindo estilhaçada: decadente diva da UFA, ela não consegue olhar a si mesma projetada na tela do cinema, que exibe um filme que irá revelar a sua própria vida no momento; ou seja, uma viciada autopiedosa, convenientemente submissa a seus médicos.

É ao fugir desta sessão (por não suportar enxergar-se por trás das superfícies), que ela conhece Robert, uma das raras personagens de Fassbinder com quem podemos, sem muitas ressalvas, nos simpatizar: um jornalista esportivo com pretensões artísticas que estabelecerá com a velha estrela um amplo jogo de duplo (constante no cinema de RWF): ele é uma imagem rejuvenescida do marido de Voss, bem como a sua própria esposa é um espelho invertido da veterana atriz e, numa cena memorável, irá vestir-se e comportar-se à maneira desta para investigar a clínica que fornece a morfina necessária à sublimação de sua insólita rival. 

Obra que nos escapa a cada plano, mostra também uma sátira de época distópica, cujo estranhamento (e assombração) advém de sua forma de luz piscante centralizada em um grande buraco histórico, cavado a nosso próprio conforto. Pensemos na genial utilização da trilha-sonora diegética com canções de country americano. Pensemos no aniquilamento da individualidade da dupla central pelos termos das novas convenções sociais. Está aqui a representação de um mundo organizado pela necessidade dos sistemas em ignorar a realidade. Falamos de 1955, de 1982 e de 2013. À semelhança dos melhores contos de fadas, O Desespero de Veronika Voss é eterno.

Bruno Cursini

 

Querelle (1982)

Entre os 39 longas de Fassbinder, Querelle é o que mais envelheceu. A imagem, a luz e a cor em Querelle estão em sintonia com o artificialismo neon do começo dos anos 1980. Mas se Coppola com O Fundo do Coração fez de sua Vegas de mentirinha um espaço que se potencializava para fora como um manancial de fantasia, Fassbinder construiu seu filme como um imenso gueto, que mira para dentro, que não dá possibilidade de respiro.

O que leva ao segundo incômodo que o filme gera hoje: o trágico amálgama de homossexualidade, marginalidade/exclusão e crime, ontológico na obra de Jean Genet, autor de Querelle de Brest. Fassbinder foi da crítica à dominação como peça inerente ao casamento, além de uma certa ironia cruel de filmes como Martha, para a fetichização da dominação. Mas essa fetichização transcende o tesão da performance na cena sexual. Inunda o mundo, as relações humanas.

Não existem pessoas ou personagens em Querelle, mas máscaras que Nono, Lysiane, Seblong e o marinheiro vestem. Também não se pode dizer que haja a relação entre pessoas, mas o jugo desse por aquele. A despeito do neon e das cores fortes, o filme é mergulhado na sombra, na cegueira da caverna.

Contradição: por um lado, a frontalidade na descrição do sexo homo e do tesão do capitão pelo marinheiro; por outro, uma maneira de enxergá-lo – como se a única finalidade do sexo fosse o domínio – que explicita um discurso de quem só se enxerga existindo na marginalidade, nos becos das metrópoles. Nas sombras, nos banheiros, no excuso como o único caminho possível.

Heitor Augusto

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